Bem vindos!

Conta-me histórias é um blog onde vos mostro alguns dos meus trabalhos e onde podemos falar de tudo um pouco. Apresenta certos assuntos que acho relevantes e interessantes, sempre aberta a conselhos da vossa parte no sentido de o melhorar. Obrigado pela vossa visita. Fico à espera de muitas mais.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Carta ao Primeiro Ministro

Exmo. Senhor Primeiro Ministro,
Dr. Pedro Passos Coelho



Escrevo-lhe esta carta, talvez tardiamente, para lhe dar a conhecer uma realidade da qual está provavelmente alheado. Recordo-me que na altura das eleições, o Sr. se referiu aos adultos que frequentam as Novas Oportunidades como ignorantes. Pois bem, vivemos em democracia e talvez por isso, temos que aceitar todas as opiniões, mesmo que não concordemos com elas. Na verdade, o senhor veio vincular uma ideia com a qual muitos portugueses concordam. É quase uma vergonha dizer-se publicamente que se tem uma equivalência do 9º ano ou do 12º, conseguida através do processo de RVCC (Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências).
Concordo que não deveria ser permitido ter acesso à faculdade através de um processo como este. Penso que não será justo para com aqueles que a muito custo, tiram o seu curso, pagando propinas exageradamente altas e estudando afincadamente por vários anos, comparativamente à brevidade com que tudo se passa num processo desta natureza.
 Inscrevi-me nas Novas oportunidades e basicamente o que me foi pedido, foi que escrevesse uma auto biografia. Que relatasse toda a minha vida, desde que nasci, até aos dias de hoje. Sinceramente, não conseguia entender como poderia a minha história de vida demonstrar fosse o que fosse sobre as minhas capacidades ou competências, mas depressa entendi que tenho vindo a desenvolver capacidades e competências, que embora não estejam validadas por nenhum curso ou empresa,   me permitem vingar no mundo laboral e noutros. Se não, vejamos:
Fiquei sozinha com o meu pai com quinze anos e fui dona de casa, cozinhando, lavando e engomando, enquanto estudava.
Sou mãe de dois filhos, um com dez anos e outro com dois. Não tirei nenhum curso, mas tive que aprender a educá-los da melhor maneira, trabalho todos os dias para que não lhes falte nada. Nada do outro Mundo, dirá o senhor. Mas tente alimentar, educar e vestir duas crianças, com um ordenado de quinhentos euros. Se isto não é uma competência, não sei que nome lhe dar.
Tirei um curso de empregada admininstrativa, nível I, que não me serviu de muito, visto que o que conta, são as experiências profissionais. Trabalho desde os meus dezasseis anos, em restauração.
Nunca tirei nenhum curso de computadores, mas escrevi e editei quatro livros, três deles infantis. Tudo feito por computador, e através da Internet.
Estes são só alguns exemplos de competências que tenho vindo a adquirir ao longo da minha vida.
Esta é a minha história, não estudei na altura que o devia fazer, porque a vida não permitiu. Conheci imensas pessoas que tiveram a mesma sorte. Isso pode, como o Sr. diz, fazer-nos ignorantes, mas não incompetentes. Existem pessoas a recorrer ao processo de RVCC, que na altura em que deviam ter estudado, cultivaram campos, tomaram conta de animais, e trabalharam duramente para ajudar a colocar mais um prato de comida na mesa. Esses "ignorantes", foram o motor bruto deste país, sacrificando os seus corpos e as suas vidas, para sobreviverem, em troca de muito pouco. Hoje não é assim, mas antes de pagarem para deitarmos o nosso produto no lixo, ou simplesmente para não produzirmos, o nosso povo vivia da agricultura e tinha orgulho do que era seu.
Posso dar-lhe vários exemplos de "ignorantes" que entraram em fábricas com treze anos de idade e que depois de lá deixarem sangue, suor e lágrimas, foram dispensados com uma indemnização de miséria, ou mesmo sem nada.
"Ignorantes" que desistiram da escola, porque tinham familiares doentes que eram o sustento da família.
Os exemplos são tantos, quantas as auto biografias que existem. Cada um com a sua história, cada um com as suas capacidades e competências, mas sem validação aos olhos de uma sociedade que vive cada vez mais das aparências. Deixo aqui o convite, para que leia algumas destas histórias.
Somos ignorantes, sim. Somos ignorantes por não termos tido a esperteza de tirar um curso a um Domingo, ou de não termos copiado nos exames, ou simplesmente porque mesmo no meio da maior dificuldade, optarmos pelo correcto e não pela burla e pelo roubo. Somos ignorantes, porque bebemos diáriamente o veneno que nos entra em casa pelos meios de comunicação, dizendo que devemos dar poder aos mesmos que destruíram este país, e que o remédio é "apertar o cinto". Mas principalmente, somos ignorantes por aceitar e interiorizar que não somos merecedores de Novas Oportunidades, nem de uma vida melhor. Que não temos valor ou que temos apenas o valor que os outros nos dão.
Mas como vê, não preciso de ter um curso universitário para lhe dizer o que penso. Enquanto tiver uma mente para pensar por mim, aceitando todas as criticas construtivas, e apagando o lixo que me tentam impingir, terei sempre uma oportunidade de validar as minhas competências. O meu agradecimento vai directamente para os profissionais de formação que me acompanharam e que me mostraram que somos muito mais do que um certificado de habilitações. Somos muito mais do que números, sentados num centro de emprego. Somos cidadãos portugueses, somos filhos de uma nação conquistadora que nunca se deteve por mais negro e obscuro que o horizonte se apresentasse. Neste momento, não tenho vergonha de o dizer: Posso ser apelidada de ignorante, mas nunca de incompetente.
Com os melhores cumprimentos, despeço-me atenciosamente.

Sónia Marques

Sem comentários:

Enviar um comentário