Bem vindos!

Conta-me histórias é um blog onde vos mostro alguns dos meus trabalhos e onde podemos falar de tudo um pouco. Apresenta certos assuntos que acho relevantes e interessantes, sempre aberta a conselhos da vossa parte no sentido de o melhorar. Obrigado pela vossa visita. Fico à espera de muitas mais.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Aventuras e desventuras de um poeta (7ª parte)

    - Ora, queiram sentar-se os presentes. No decorrer de todo este julgamento, se levantou a hipótese dos textos em questão terem sido roubados pelo Sr. Jacinto Gomes, facto que não ficou provado neste tribunal, tratando-se apenas de uma suposição que mostra uma dúvida razoável, razão pela qual não poderá o Sr. Jacinto ser acusado formalmente de tal crime. Com respeito ao roubo de direitos de autor dos textos em questão, o tribunal viu como provado que tal facto ocorreu e portanto, cabe-me a mim considerar o réu culpado das acusações de plágio sobre as obras em questão. Sendo assim, condeno o réu a destruir os livros já impressos com este conteúdo e a indemnizar o Sr. Jacinto Gomes numa coima de 20 000 euros, bem como a cobrir as custas de todo este processo. Está encerrada a audiência!
Foi sem dúvida o dia mais feliz da minha vida. Abraçamo-nos com alegria e com o sentimento de dever cumprido, ao som dos desabafos de Brito, que gritava como um louco, dizendo que aquilo não ficava assim e que ia recorrer da sentença até à última instância. Mas não o fez, provavelmente aconselhado pelo seu advogado, que não tinha material para o fazer.
20 000 euros deu para mudar um pouco a minha vida. A primeira coisa que fiz foi enviar um cheque de 2 000 euros à minha mãe. Não era muito, visto ter vivido lá em casa tantos anos, mas era o que achava justo.
Depois, bem... Depois paguei um grande jantar a todos aqueles que me apoiaram e que não desistiram de mim.
Hoje já não trabalho na bomba de gasolina. Estou a tirar um curso de literatura e marketing e ao mesmo tempo trabalho com o Marco na editora. O meu trabalho consiste em avaliar trabalhos de escritores desconhecidos.
Existem muitos por aí e alguns bastante bons, apenas aguardando uma oportunidade.
O primeiro concelho que dou a todos é o de registarem os seus trabalhos antes de os entregar a quem quer que seja. Já diz o povo e com toda a sabedoria: “gato escaldado, de água fria tem medo.”
O segundo concelho é... Não desistam! Um dia, será o vosso dia.

















Fim

domingo, 27 de maio de 2012

Aventuras e desventuras de um poeta (6ª parte)

A cantiga do bandido era um pouco diferente, mas nem sequer imaginando o que o esperava, tal não era a prepotência.
  - Meu caro, depois de analisar o material que me deixou, posso dizer-lhe que se enganou a respeito do seu amigo. Embora não seja tudo mau, já vi bem melhor.
  - Então acha que não vale a pena ser editado?
  - Temo que não. Ele escreve bem, mas isto está muito visto. As editoras, mais do que nunca, procuram temas fortes e inéditos.
Fui apanhado de surpresa, mas algo me disse que o facto de eu ter comentado que o meu amigo tinha dinheiro, podia ser a razão da nega de Brito. Decidi afastar-me, sem fazer alarido.
  - Bem, confio na sua avaliação, tendo no entanto pena de ser eu o portador de tal notícia. Mas uma pessoa com o seu conhecimento, sabe com certeza do que fala e portanto, só me resta agradecer-lhe o tempo que me dispensou e comunicar-lhe o resultado.
  - Ora essa! Disponha sempre. Um amigo da minha filha, é meu amigo também. E o Jacinto, tem escrito mais coisas?
  - Pouco.
  - Não desista. Sei que tem grande potencial.
Canalha! Aproveitador! Se houvesse justiça no mundo, não sairia impune.
Tinha muitas dúvidas de que o meu plano desse certo, mas não podia desistir. Com um pouco de sorte, ele voltaria a cair na tentação de roubar aqueles poemas também. Deixei-os lá, desta vez, propositadamente.
Antes de sair, perguntei à secretária como podia ter acesso às datas de lançamento dos livros. Deu-me o site da editora e disse que sempre que existisse um livro novo, poderia encontrar lá a data e o local de lançamento.
Dirigi-me a casa. Ao meter a mão ao bolso do casaco em busca da chave, encontrei algo que me fez entrar e sair logo de seguida. O cartão de Marco Ferreira, namorado de Filomena. Não custava tentar novamente. O não, seria sempre garantido.
A editora de Marco tinha um aspecto moderno e descontraído, nada parecida com a de Brito. Dirigi-me à recepcionista que me encaminhou até à sua sala.
  - Como está, Jacinto? Entre, entre.
  - Como está, Marco? Desculpe vir incomodá-lo...
  - Ora essa! Fui eu que o convidei. E então, o que o traz por cá?
  - Bem, como sabe, tenho umas poesias escritas que gostava de ver editadas. Não tenho tido sorte com as outras editoras que tenho procurado.
  - Este é um meio dificíl, mas aqui, se a qualidade se justificar, por norma editamos.
  - A minha maior dificuldade é o factor monetário.
  - Bem, se o seu trabalho for bom ao ponto de merecer a nossa atenção, não precisa de se preocupar com isso.
Fiquei surpreendido com as palavras de Marco, não lhe querendo, no entanto, contar o que se tinha passado com Brito.
  - A Filomena contou-me que mostrou os seus textos ao pai. O que disse ele?
  - Gostou, mas faltou-me o dinheiro para editar.
  - O velho Brito não muda. Conte-me lá, o que foi que lhe fez.
  - O que me fez? Não entendo a pergunta.
  - Deixe-me adivinhar! Disse-lhe que tinha que pagar um balúrdio para editar e você desistiu.
  - Foi mais ou menos isso.
  - E devolveu-lhe os seus originais?
Estava a ficar encurralado com as perguntas de Marco, sem perceber como sabia ele do ocorrido. Será que Brito lhe tinha contado algo?
  - Não.
  - Ah! Ah! Ah! A velha história de bandido. Quase que aposto que os seus trabalhos já estão por aí publicados, com autoria de outro.
Ao ver a minha cara de espanto, explicou:
  - Eu caí na mesma história, há alguns anos atrás. O Brito roubou-me um livro que levei três anos a escrever. Nunca contei a Filomena. Da maneira como gosta do pai, iria sofrer demais. Mas ele começou a intrometer-se no nosso namoro e acabámos por nos separar. Nunca a esqueci e agora, com uma vida mais estabilizada, voltei com o intuito de casar com ela.
Ali percebi que não valia a pena continuar a omitir o que me acontecera.
  - Comigo aconteceu o mesmo. Deixei-lhe os meus textos, disse-me que eram bons, mas a conta que me apresentou para publica-los era demasiado alta. Por isso desisti, até ver os meus poemas num livro assinado por ele. Agora só penso em vingar-me.
  - E como pretende fazer isso? Não tem provas de que aquele era o seu trabalho, pois não? 
  - Não, mas depois disso, deixei-lhe lá mais uns textos e estou à espera que caia na mesma asneira. Se o fizer, tenho uma surpresa preparada para ele.
  - Isso é capaz de demorar algum tempo, ou de nem sequer voltar a acontecer.
  - Sim, eu sei, mas não posso fazer mais nada. Entretanto vou tentando publicar os meus poemas noutros lados.
  - Pois bem, congratulo-o por, ao menos estar a fazer algo. Eu fiquei num estado tal, que não tive reacção para vinganças. Aliás, a minha vingança foi ter vencido no meio editorial e voltar para a filha. Pois bem, vou analisar a sua obra e depois entro em contacto consigo.
  - Muito obrigado, Marco.
Quando perdemos a confiança no ser humano, o nosso ego teima em não gostar de ninguém, mas Marco pareceu-me sincero.
Já tinham passado dois meses desde que tinha deixado os textos com Brito. Todos os dias visitava o site da editora em busca dos lançamentos. Finalmente parecia estar com sorte. No dia seguinte iria ser lançado um livro de sua autoria, num auditório ali perto. Quase nem dormi a imaginar a cara dele, na hora da vingança. Podia dar-se o caso de aquele não ser o meu trabalho, mas tinha que ter a certeza.
Finalmente chegou a hora. Arranjei-me o melhor que pude e dirigi-me ao auditório.
A sala estava cheia de gente. Pelos vistos, Brito tinha um vasto público. O que me deixou um pouco orgulhoso, se tivermos em conta que era o meu trabalho que aplaudiam.
Andei pela sala, bebendo um pouco de champanhe, – posto à disposição dos convidados – sem me dirigir à mesa onde Brito autografava os livros, evitando ser visto por ele. Consegui surripiar um, dei uma vista de olhos. Eram sem dúvida os meus poemas, mais uma vez. A soberba de Brito era tão grande, que pensava mesmo ser imune a qualquer castigo.
De repente, fui surpreendido por Marco, que me deu um toque no ombro. Fiquei um pouco assustado, pois não sabia se pretendia ou não denunciar-me, ou mesmo se já o tinha feito. Fez-me sinal para que o acompanhasse. Segui-o pelo meio da multidão até um canto da sala.
  - Então, é hoje o dia da vingança?
  - Sim. Constatei que afinal Brito não é tão inteligente como pensava. Voltou a publicar os meus textos, assinados por si.
  - O velho não é inteligente, é esperto. Ou pelo menos, pensa que é. Apenas lhe quero dizer que li os seus textos e que estou disposto a editá-los.
  - E quanto é que isso me vai custar?
  - Nada. A única condição é que a editora receberá sessenta por cento das vendas. O lançamento é feito por nós, sem qualquer encargo da sua parte e não terá que adquirir qualquer exemplar. Isto prova, sem sombra de dúvidas, que o seu trabalho é muito bom e que tem pernas para andar, ainda que seja um autor desconhecido. O que me diz? Provavelmente a sua vingança é escusada.
  - Desculpe Marco, mas não. A minha vingança, como lhe chama, tem como objectivo desmascarar este homem e evitar que outros passem pelo mesmo que eu passei. Pensava que o Marco, mais do que ninguém, entenderia isso. Se depois do que se passar aqui hoje, a sua proposta ainda se mantiver de pé, muito bem. Se não, tenho pena, mas não vou desistir do que me trouxe aqui.
  - Compreendo. Muito bem, espero que tudo lhe corra pelo melhor.
Ao vê-lo afastar-se, percebi que estava a desperdiçar novamente a oportunidade de concretizar o meu sonho. Mas a minha condição de fazer justiça falava mais alto.
Depois de autografar uma centena de livros, Brito dirigiu-se a um pequeno palco, a fim de discursar sobre a obra e de agradecer a presença dos convidados. Era chegada a hora de concluir o meu plano.
Agradeceu a presença de todos, enalteceu-se falando da falsa inspiração que tivera ao escrever os poemas e deixou no ar a oportunidade de lhe serem feitas perguntas pelos presentes. Foi então que aproveitei a deixa.
  - Sr. Brito, qual é a sensação de estar a ser aplaudido por um trabalho que não é seu?
Ao encarar comigo, mudou de cor, ficando branco como cal.
  - Desculpe, meu rapaz, mas não entendi a pergunta.
  - Pois eu acho que entendeu muito bem a minha pergunta.
Dirigi-me ao palco, encarando o público que me observava como se eu fosse um extraterrestre acabado de aterrar.
  - Senhoras e senhores, este homem que aqui está, não é mais do que um impostor e estes poemas não são seus.
   - Que ultraje! Como pode acusar-me de tal injúria? Espero que tenha provas do que diz, meu rapaz.
  - Esteja descansado Sr. Brito. Desta vez fiz os trabalhos de casa e posso afirmar que estes poemas estão registados em meu nome, como autor. Esta é a verdade. Estes são os meus poemas.
  - Não sei o que pretende com tamanho circo, mas isto não vai ficar assim. Vou processá-lo por difamação, provarei que as suas afirmações são falsas, em tribunal. A não ser que você não tenha dinheiro para um advogado. Nesse caso, resta-lhe apenas pedir desculpa a toda esta gente e acabar com as difamações, em busca de lucro fácil.
Foi nesse momento que percebi onde me tinha metido. Era certo que tinha posto toda a minha energia na vingança, sem ter pensado nas consequências.
Mas, o milagre aconteceu. Marco levantou-se, caminhou na direcção do palco e disse:
  - Não se preocupe com isso. O meu advogado representará Jacinto, para provar o que diz.
Nesta altura Brito estava roxo de raiva. Marco sabia o seu segredo e, tal como eu, queria justiça. Saímos dali, deixando todos boquiabertos, sussurrando comentários. Mesmo que aquilo não desse em nada, já valia o esforço por ter visto Brito tão aflito. Marco ligou prontamente para o seu advogado e no dia seguinte tive uma reunião com ele.
  - Sr. Jacinto, embora o Marco já me tenha posto ao corrente da situação, gostaria que me contasse a sua versão dos acontecimentos.
Contei toda a história sem ser interrompido, até à parte em que parti a montra da editora.
  - Bem, – disse o advogado – isso pode ser mau para si. Existem testemunhas?
  - Penso que não. Pelo menos nunca fui procurado por isso.
  - De qualquer forma, se foi apresentada queixa na policia, e acredito que foi, o Sr. Brito pode alegar que você partiu o vidro e entrou, roubando os textos que diz serem seus.
  - Mas eu não entrei lá, apenas parti a montra. E além disso, nessa altura ele ainda não tinha os segundos textos.
  - Pois, mas você não tem provas disso.
  - Nem ele tem provas de que fui eu que parti a montra.
  - Estou apenas a dizer-lhe que isto pode vir a ser mencionado em tribunal e que você tem que ter um álibi consistente. Se eu fosse a si – e agora falo como seu amigo e não como seu advogado – mantinha a história, dizendo que fui ao cinema com os meus amigos. Acha que os seus amigos são pessoas para testemunharem por si?
  - Acho que sim.
  - Então ficamos assim. Naquela noite você foi ao cinema com os seus amigos e depois do filme, regressou a casa.
Claro que quando pedi ao Tó para ser minha testemunha, logo se prontificou a ajudar.
O tempo foi-se arrastando e a justiça tardava em chegar. Não que isto fosse uma novidade no nosso país.
O que me mantinha mais confiante no futuro era o facto de ter finalmente editado os meus poemas. Na noite do lançamento do livro estava tão feliz que o coração parecia não me caber no peito.
Como sabem, não tenho muitos amigos, por isso fiquei abismado quando vi tanta gente a querer um autógrafo de um anónimo. Tudo, claro está, proporcionado por Marco que, além de ter feito uma excelente publicidade ao livro, convidou toda a gente que conhecia para o evento.
A vida começava a sorrir finalmente.
Comecei a receber algum dinheiro pelas vendas. Claro que não fiquei rico, mas sabia bem receber aquele dinheiro, vindo de pessoas que apreciavam o que mais gosto de fazer.
Cada vez que havia uma sessão no tribunal, até as unhas dos pés se me eriçavam. E a última foi com certeza a pior de todas. O Tó tinha ido depor. Ele estava nervoso, mas eu ainda estava mais. Mentir nunca foi o meu forte e tinha medo que Tó fosse apanhado nalguma rasteira.
  - Sr. António, é verdade que na noite de 30 de Outubro de 2009 o senhor foi ao cinema com o Sr. Jacinto e a sua namorada da altura, D. Marisa.
  - É, sim.
  - E que filme foram ver?
  - Um filme de acção, mas não me recordo do título.
  - Claro, já passou algum tempo. No entanto, estranho a sua resposta, tendo em conta que o Sr. Jacinto disse ter ido assistir a uma comédia.
  - Bem, eu estive mais tempo a namorar do que...
  - Não precisa de se justificar, Sr. António. Já todos perceberam onde quis chegar. Não tenho mais perguntas.
O juiz pediu um intervalo de uma hora para tomar a sua decisão.
Fomos os quatro, o advogado, Marco, Tó e eu, até ao café mais próximo do tribunal, fazer tempo.
Pensava que o testemunho de Tó podia ter posto tudo em causa, mas o advogado não via assim. Dizia que enquanto não existisse uma prova concreta do meu envolvimento no roubo dos textos, existia sempre uma dúvida razoável e portanto nada poderiam fazer contra mim.
Aquela era uma hora que mais parecia um século. Os meus nervos já se enervavam a eles próprios, tinha uma secura na garganta, como se a água do meu corpo estivesse a ser sugada e concentrada nas palmas das mãos, que transpiravam abundantemente.
Qual seria o veredicto do juiz? Será que finalmente se faria justiça ou será que tudo aquilo tinha sido uma grande perda de tempo?

(Continua)

(Imagem retirada da Internet)

sábado, 26 de maio de 2012

Aventuras e desventuras de um poeta (5ª parte)


Um livro pequeno com uma capa sugestiva e um título estranhamente familiar. Chamava-se “Coisas da Alma” e sem me preocupar com o nome do autor, abri-o para ler o primeiro texto. Sentia que nada naquelas palavras era estranho, até que dei por mim a recitar o poema, sem sequer precisar de o ler.
Nunca fui atingido por um raio, mas tenho quase a certeza que se sente o mesmo que senti, ao perceber que aquelas eram as minhas poesias, as mesmas que tinha levado à editora de Brito. As mesmas que, por desânimo e por esquecimento, nunca tinha recuperado. Quando virei a capa em busca do nome de autor, o calor da raiva subiu por mim até se alojar bem no alto do meu crânio, como se quisesse sair disparado. Manuel Sousa Brito.
Como podia ter sido tão estupido ao ponto de ser enganado daquela maneira? Como podia haver gente tão baixa no Mundo, ao ponto de me fazerem o que aquele homem me fizera?
Desesperado, tentei encontrar o Tó e a namorada, para lhes dizer que ia para casa. Não sabia bem que momento era aquele, mas ver um filme não era o que mais queria fazer. Esganar Brito, isso sim, era o que me apetecia naquele momento.
Andei muito, sem sequer me preocupar para onde me levavam os pés. Não sei se o meu subconsciente sabia o que fazia, pois fui direito à porta da editora. Tomado de raiva, peguei numa pedra e rebentei com a montra. O alarme disparou, acordando-me do transe psicológico em que estava e corri para casa, temendo ter sido visto por alguém. Assim que cheguei, corri para o quarto, tentando arranjar maneira de provar que aquelas eram as minhas obras, aquelas eram as minhas “Coisas da Alma”. Nem o título esle se importou em alterar. Tudo aquilo tresandava ao meu talento, mas assinado com o nome dele.
Não havia volta a dar, nunca poderia provar o contrário. Tinha que existir outra maneira de fazer aquele homem sem escrúpulos, pagar.
Dei voltas e mais voltas, pensei até em comprar uma arma, só para o assustar e fazê-lo confessar. Mas Filomena não merecia isso e eu podia acabar preso. Finalmente, perto das quatro da madrugada, tinha em mente um plano para o desmascarar. Cansado, mas entusiasmado com a ideia, consegui adormecer, sabendo que teria uns dias de árduo trabalho pela frente.
Passei dias e noites de volta de tudo o que tinha escrito, arranjando ainda tempo para escrever mais alguns poemas. Passadas duas semanas tinha tudo o que precisava para dar início à minha vingança. Era chegada a hora de lançar o isco e rezar para que Brito tropeçasse na sua própria casca de banana.
Em passo firme e decidido, sem deixar os meus amiguinhos do sótão entrarem em diálogo, dirigi-me à editora e pedi para falar com ele. Com a maior cara de pau do mundo, cumprimentou-me alegremente.
  - Como está, Jacinto? Bons olhos o vejam! Devo dizer-lhe que fiquei muito desapontado por saber que o seu namoro com a minha filha, terminou.
  - Bem, continuamos amigos. E como está Filomena?
  -Lá anda, na vida dela. Pessoalmente não gosto muito do tipo com quem ela anda, mas há muito que deixei de poder fazer algo contra as escolhas da minha filha. Resta-me rezar para que seja feliz.
Quanto mais ouvia a sua voz, mais me apetecia apertar-lhe o lenço que tinha ao pescoço e enfiar-lhe o cachimbo no... Bem, adiante.
  - Mas penso que não terá sido sobre Filomena que me tenha vindo falar, pois não?
  - Não, na verdade venho cá por causa de um amigo. Sabe, tenho um amigo que escreve poemas, tal como eu. A única diferença entre nós é que ele tem dinheiro para as publicar. Por isso, lembrei-me de si. Acha que pode dar uma vista de olhos no seu trabalho?
  - Claro, meu rapaz! Mande cá o seu amigo que depois logo se vê.
  - Bem, ele pediu-me que o trouxesse em nome dele. Por isso, posso deixá-lo já.
  - Sendo assim, não vejo inconveniente nenhum nisso. Este seu amigo já publicou alguma coisa?
  - Não, é a primeira vez, tal como eu.
Agora tinha quase a certeza que Brito tinha ficado interessado.
  - Muito bem. Pode ficar tranquilo, que eu vou ver o que se pode fazer pelo seu amigo.
  - Muito obrigado, Sr. Brito. Este amigo é como se fosse um irmão para mim e por isso gostava que tudo desse certo.
  - Bem, se ele tiver a qualidade que você tem, pode muito bem vingar.
  - Não querendo menosprezar-me, ele é muito melhor. Digamos que tem mais experiência. 
Saí dali aliviado por não ter que continuar a respirar o mesmo ar que ele, e com a nítida sensação de dever cumprido. Agora era esperar que mordesse o isco.
Claro que esperei mais do que queria. A ansiedade era o truque de Brito pra fazer com que cometessem erros, dos quais lhe provinha o lucro. Mas desta vez eu estava preparado para esperar, pois - continuando com os provérbios populares, “a vingança é um prato que se serve frio”.
Entretanto, fui mostrando à minha amiga depressão que também dela, tinha aprendido a defender-me. Comecei por criar uma rotina saudável, alimentando-me melhor e indo para a cama a horas decentes, saindo sempre que podia, para me divertir. O Tó e a minha mãe foram as pessoas que mais notaram a minha mudança, talvez mostrando assim que eram as pessoas que realmente se preocupavam comigo. O Tó, por me ver com melhor aspecto e a minha mãe por ver a comida a desaparecer do frigorífico.
Um dia, numa das nossas saídas nocturnas, encontrámos a Filomena e o namorado. Gostei imenso de a ver. Já não tinha buço e estava com um ar felicíssimo. Apresentou-me o namorado, que me pareceu ser um bom homem. Pelo menos, para dono de uma editora, não tinha as peneiras que o pai dela tinha. Depois de uma longa e animada conversa, entregou-me o seu cartão.
  - Quando se decidir a publicar, não hesite em falar comigo. A Filomena fala muito sobre si e sendo ela tão boa pessoa, decerto que também o é. - Ao ouvido, sussurrou-me – Não sai nada ao pai.
Fiquei surpreso com o comentário, mas não dei importância.
Dei importância sim, ao cartão que me entregou. Seria aquela uma nova maneira de tentar editar um livro? Provavelmente, não.
Embora aquele homem aparentasse ser boa pessoa, “gato escaldado, de água fria tem medo” e nada me garantia que não me pudesse enganar ou pedir rios de dinheiro, em troca de uma publicação. Em todo o caso, não fazia mal guardar aquele contacto.
Em casa as coisas iam de mal a pior. A minha mãe, queixava-se pela falta de dinheiro e de ajuda para arrumar a casa. A minha avó, surda como era, tinha sempre a televisão em altos berros. O meu meio-irmão, quando não estava no computador ou a jogar play-station, apanhava-me fora de casa e mexia em tudo o que queria no meu quarto. À noite tudo isto era regado com a presença fantástica do meu padrasto e as suas piadinhas de mau gosto.
Precisava urgentemente de sair daquele manicómio. Mas não era fácil. O que ganhava na bomba de gasolina onde trabalhava, nem dava para mandar cantar um cego, quanto mais para morar sozinho.
E foi neste contexto que meti, mais uma vez, argolada. Foi à hora do jantar que, como sempre, começou a discussão. O meu padrasto tinha bebido uns copitos, coisa também normal e que lhe aguçava a língua.
  - É da minha vista ou estás mais gordo? - Perguntou-me ele.
  - É da sua vista. Estou na mesma.
  - Não estás não. Estás mais gordo. Mas nem por isso trazes mais dinheiro para casa.
  - O que é que quer dizer com isso?
  - Quero dizer que a vida está má para todos e que isto aqui não é nenhuma pensão. A nossa sorte é que, sem contar com aquela feiosa que trouxeste cá a casa um dia destes, não trazes cá ninguém. Se não era ainda maior a despesa.
  - Oh! Horácio, deixo o miúdo! - Interrompeu a minha mãe.
  - O problema é mesmo esse! É que tu és responsável, porque ainda o tratas como se fosse um miúdo. Um marmanjão de trinta e cinco anos!
  - Mas responsável de quê? - Perguntei eu, num tom exaltado.
  - Responsável por tu não ires à tua vida!
  - Muito bem, se é esse o vosso maior problema, eu saio hoje mesmo.
  - Não sejas parvo, filho! E para onde irias?
  - Se calhar vai ter com a feiosa, para fazerem uns feiinhos.
Algo de muito negro se apoderou do meu corpo, algo tão negro como carvão. O que era, não sei dizer, apenas sei que tinha a força de dez homens. Talvez fossem os anos que passei a ser humilhado por aquele ser desprezível, talvez fosse o facto de ter aprendido uma lição de vida, ou simplesmente tinha aprendido finalmente a defender-me e a dizer basta.
Levantei-me da mesa, e concentrei toda a minha energia no punho direito, acertando em cheio no nariz de Horácio. Depois, simplesmente peguei no blusão e saí, deixando a minha mãe a apanhar os cacos e o desprezível estatelado no chão.
Sabia que não podia voltar para casa. Mas não tinha para onde ir. Telefonei ao Tó. Fiquei em casa dele até ao fim daquele mês, e ter dinheiro para alugar um quarto.
Até tive alguma sorte, visto que a senhora que me alugou o quarto me lavava a roupa sem pedir mais por isso. Disse que eu lhe fazia lembrar um neto que tinha, mas penso que só fisicamente, pois não devia existir ninguém, tão azarado como eu, no mundo.
Com tanto a acontecer na minha vida já quase nem me lembrava de Brito, quando recebi o seu telefonema. Combinámos encontrar-nos na editora.

(Continua)
 
(Imagem retirada da Internet)

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Aventuras e desventuras de um poeta (4ª parte)

Duas semanas passaram e eu já não sabia o que fazer. Tinha medo de ligar para a editora, sob pena de mostrar desespero, mas achava que já era hora de ter uma resposta. Nem que fosse uma negativa.
Sempre que perguntava algo disfarçadamente a Filomena, não obtinha nenhum resultado, o que cada vez mais me levava a pensar que aquilo não ia dar em nada. E lá começava o diálogo na minha cabeça, e desta vez o pessimismo estava a ganhar: afinal, com tantas pessoas a escrever, o que me levava a pensar que eu tinha o que era preciso?
Estava eu no meio destes tristes e desanimadores pensamentos, quando o telefone tocou. Levantei-me contrariado, pensando tratar-se de Filomena, pela 46ª vez.
  - Tou.
  - Estou, sim. Jacinto?!
  - Sim, o próprio.
  - Daqui fala Brito. Como está?
O meu dia voltou a iluminar-se.
  - Sr. Brito! Como está? Pensei que se tivesse esquecido de mim.
  - Longe disso, meu amigo. Sabe como é, ando sempre muito ocupado, mas isso agora não importa. Li o seu trabalho e acho que tem potencial para ser publicado. O que me diz de passar pela editora, para acertarmos os pormenores?
  - Claro que sim! E quando?
  - Bem, ainda é cedo. Lá para as três e meia, parece-lhe bem?
  - Sim, claro. Parece-me muito bem. Até lá, então e muito obrigado.
A minha vida tinha dado finalmente a volta. Tudo iria correr sobre rodas daqui para a frente. Agora já não existiam dúvidas sobre a qualidade do meu trabalho.
Tinha que escrever algo, a inspiração parecia ter voltado em força. É estranho como os momentos mais felizes, bem como os mais infelizes, me fazem sempre pegar na caneta e no papel para aliviar o que transborda da minha alma.
Antes da hora marcada já tinha o meu bloco quase esgotado de tanto escrever, mas foi uma boa terapia para acalmar os nervos. O que dizer? Há quem beba, há quem fume, há até quem faça yoga, eu escrevo.
Depois da reunião, ao contrário do que sentia ao chegar, a sensação era de derrota, como se tivesse morrido na praia, depois de ter atravessado o Oceano Atlântico. A única coisa boa de tudo o que ouvi, foi o facto de terem gostado do que escrevi. Quanto ao resto... bem, quanto ao resto só vos posso dizer que o povo é o mais sábio de todos os sábios, traduzindo as verdades em provérbios conhecidos de todos nós. Tais como: “Quando a esmola é grande, o pobre desconfia”, “O pão do pobre quando cai é com a manteiga para baixo” ou “Pau que nasce torto, tarde ou nunca se endireita”.
Resumindo, a proposta do Sr. Brito era a seguinte: a modo de poder editar um livro com os meus poemas, teria de ser assinado um contrato onde eu tinha que adquirir duzentos exemplares de um primeira edição de quinhentos, a um preço de oito euros cada, o que perfaz o valor de mil e seiscentos euros.
O livro seria vendido ao público pelo valor de dez euros. Os trezentos livros que restavam, seriam postos à venda em livrarias, dos quais eu receberia os direitos de autor a quando das vendas, no valor de dez por cento do preço do livro.
Receberia um euro por cada livro vendido. E ainda ficaria com duzentos livros em mãos, que poderia vender no dia do lançamento, situação pouco provável.
Claro que assim que ouvi da boca do meu “futuro sogro” o valor de mil e seiscentos euros, foi como se tudo não passasse realmente de um sonho, do qual eu tinha sido acordado pelo som de uma qualquer alvorada de quartel.
Na minha mente não havia muito espaço para fazer as contas reais, mas algo me disse naquele instante, que o contrato não era muito justo para com o autor e era vantajoso para a editora. Confrontei-o com isso e com o facto de não possuir tanto dinheiro para investir, ao que me respondeu que visto ser um autor desconhecido, a editora não podia correr riscos.
Lamentou que não pudesse prosseguir com a edição, mas que era a única maneira de o fazer. Lamentou ele e lamentei eu, ter-me dado a tanto trabalho para nada.
Foi então que tive uma catarse: aquilo mais não era, do que carma. Usei alguém para atingir os meus objectivos e estava agora a ser usado por outrem. Bem feito para mim, por brincar com os desígnios de Deus.
Mais uma vez voltei à estaca zero e desta vez com um bónus agarrado ao pescoço. Filomena parecia nem reparar na minha tristeza e eu não sabia como acabar com o namoro. Era quase como se eu devesse continuar com ela, para assim pagar o mal que lhe fazia. De qualquer forma, já nem me esforçava para arranjar um plano de acabar com tudo. Não tinha cabeça para isso, nem para nada.
O desânimo era tal que já não vivia, mas sim sobrevivia, arrastando-me para o trabalho, para casa, para ir ter com ela, para tudo, como um zombie.
Mas até Filomena me abandonou. Facto pelo qual devia ter sentido alívio, mas não foi o que sucedeu.
  - Preciso muito de falar contigo. - Disse-me ela um dia.
  - O que se passa? Se é outra vez sobre casamento, digo-te o mesmo que te disse antes: é cedo demais.
  - É sobre casamento, mas não contigo.
  - Como assim?
  - Bem, isto é muito difícil para mim, mas tenho que ser tão correcta contigo, como sempre foste comigo.
“Ai, se tu soubesses!”
  - Eu tive um namoro há uns tempos atrás, que durou alguns anos. Acabámos, porque o meu pai dizia que ele só tinha interesse em mim por causa da sua editora. Sabes, ele era escritor.
Enquanto ouvia aquela história tão parecida com a minha, engolia em seco, tentando fazer um ar compreensivo.
  - Pois bem, voltámos a encontrar-nos e ele é agora dono da sua própria editora, razão pela qual esse problema do meu pai, deixou de existir. Ele diz que nunca me esqueceu e que quer casar comigo. E eu, por muito que me custe dizer-te, ainda o amo.
Eu estava abismado. Tinha à minha frente o final ideal para saltar fora do relacionamento com ela, mas inexplicavelmente, estava danado. Sentia-me o mais traído dos homens.
  - E só ao fim deste tempo todo é que me dizes isto? O que queres que faça agora, com todos os sonhos e planos que tinha? O que faço agora da minha vida?
  - Desculpa, mas também nunca pensei que gostasses assim tanto de mim para ficares nesse estado. De qualquer forma não seria justo, nem para mim e muito menos para ti, que eu te enganasse, estando contigo e gostando de outro.
Eu ouvir aquelas palavras, percebi que tudo o que eu sentia nada tinha a ver com Filomena, mas sim com o pai dela. Tudo o que lhe disse, era ao pai que estava a dizer. No meu íntimo sabia que ela tinha razão, e tinha com certeza todo o direito de ser feliz. Ela, mais do que ninguém, tinha esse direito. Era eu o miserável, era eu o traidor. Caindo em mim, sorri-lhe e disse:
  - Tens razão. Tu mereces toda a felicidade do mundo. E por gostar tanto de ti, só posso deixar-te ir e ordenar-te que sejas a mais feliz das mulheres.
Não se riam. Eu aprendera realmente a gostar de Filomena e tudo o que dizia era sentido. Ela fez-me uma festa no rosto e disse com voz doce:
  - Meu poeta. Eu sabia que tu ias entender. Nunca te esquecerei e espero que possamos ficar amigos.
  - Claro que sim. Nem eu permitiria que fosse de outra maneira. Mas com uma condição.
  - Qual?
  - Que me convides para o casamento.
  - Considera-te convidado.
Depois de um terno e longo abraço, de duas pessoas cujas almas ficariam ligadas para sempre, nem sempre pelas melhores razões, despedimo-nos.
Mas se pensam que a minha história com esta família fica por aqui, estão enganados.
Como diz, mais uma vez acertadamente, o povo, “o Mundo é pequeno”, e para mim tem dias que parece mais um penico. É redondo, levando-nos em espiral sempre ao mesmo sítio e mostrando as “cagadas” que fazemos com ou sem intenção.
Realmente estava a atravessar um dos piores momentos depressivos da minha vida. Talvez estivesse a exagerar, visto que a perda de um pai não se podia comparar à perda de um sonho. Não era a pior depressão, mas sem dúvida, uma das piores recaídas desta doença que se esconde por detrás de cada acontecimento, em busca de se alimentar de mim nos momentos de fragilidade.
Caí num buraco escuro onde a luz do sol era impenetrável. Tudo parecia morto e sem vida, igual a tudo o resto, demasiado visto, demasiado banal. Já nem o papel me confortava, pensando cada vez mais que não existia razão para continuar a lutar para me manter à tona.
Podem achar tudo isto exagerado da minha parte, afinal foi apenas uma impossibilidade. Não era que a minha escrita fosse má, apenas os meus bolsos que estavam vazios, deixando assim tudo por fazer.
O facto de estar sozinho nesta luta também me dava tendência ao isolamento, como se progressivamente deixasse de comer, até o apetite desaparecer de vez. Tinha alturas de apatia, que se tornavam em fúrias, que se tornavam em pranto e que acalmavam em suspiros de cansaço.
Não, não era apenas o que tinha acontecido. Era um conjunto de situações que vinham a acumular-se ao longo de muitos anos. Isto tinha sido apenas a gota de água que fez o copo transbordar.
Algo precisava de ser feito. Algo tinha que mudar em mim. Só assim o mundo à minha volta poderia também mudar. Comecei por tentar sair para evitar o isolamento que me consumia. Claro que o Tó era a minha companhia, visto não ter mais amigos. Embora não tivéssemos gostos parecidos, sempre que saíamos juntos, pelo menos distraía-me um pouco dos meus problemas. Combinámos ir ao cinema.
O centro comercial estava cheio de gente, ou não fosse sexta-feira à noite e fim do mês. O Tó foi comprar os bilhetes enquanto eu dava uma vista de olhos pela livraria.
Foi então que o vi...

(Continua) 

(Imagem retirada da Internet)

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Aventuras e desventuras de um poeta (3ª parte)



Na manhã seguinte queria continuar com a sensação de amnésia, mas o facto de a receber lá em casa nessa noite, impedia-me de o fazer.
Quem se fartou de gozar comigo foi o Tó. Depois de lhe contar como tinha corrido o meu encontro da noite anterior, fui, como era de esperar, motivo de uma impiedosa chacota. Mas até isso parecia um passeio no parque comparado com o que me esperava nessa noite.
Quando comuniquei à minha família que ia levar uma pessoa lá a casa, as diversas reacções não me deixaram nada descansado. A minha mãe já planeava até o vestido que iria levar ao casamento – tal não era a vontade de me ver pelas costas. O meu padrasto, congratulava-me por finalmente lhe dar mostras de que não era panasca, não sem deixar no ar a sua graça com o comentário infeliz “vê lá se não é um travesti, há que apalpar o material para tirar as dúvidas”. O meu meio-irmão, esse, apenas levantava a cabeça do comando da play-station para rir com os larachas do pai. Até a minha avó, que quando é preciso não ouve nada, se pronunciou sobre o assunto para soltar um “coitada”, em tom de desabafo.
Por que será que quando não queremos que algo aconteça, o relógio parece debochar de nós, apressando os ponteiros no sentido da malfadada hora? Foi o que senti, ao ouvir a campainha a tocar.
Filomena estava mesmo desesperada, ou era o que dava a parecer, visto ter chegado meia hora antes da hora marcada.
Depois das apresentações da praxe, lá nos sentámos à mesa. Tentava falar o mínimo possível, não dando azos a grande diálogo, mas o meu padrasto não me deu tréguas. Tinha ali a hipótese ideal para me humilhar novamente. E assim fez, contando tudo o que me poderia expor ao ridículo, fazendo referência aos meus boxers com corações, contando que em pequenino eu gostava de “limpar o salão” antes de ir para a cama, e sempre intercalando com anedotas alusivas às mulheres feias e de bigode – vá-se lá saber porquê. Mas realmente “o amor é louco, não façam pouco”, e a minha futura namorada continuava a fitar-me com os mais enternecedores olhos que podia expressar.
Finalmente tudo acabou e fui levá-la a casa, com uma sensação de missão meio-cumprida. Os dados estavam lançados, havia que marcar o encontro com o pai dela. No caminho, ainda tentou agarrar-me, recorrendo aos dotes de sedução que pensava que tinha, mas fui firme na minha postura de cavalheiro e combinámos almoçar no dia seguinte em casa dela.
Pensava que depois da provação por que tinha passado, ficaria mas calmo, mas pensei mal. Esta era a minha chance de mostrar o meu trabalho a quem realmente percebia do assunto e, quem sabe, ver finalmente um original meu ser editado. Razão pela qual tinha os nervos em franja.
O pai de Filomena parecia um aristocrata, de lenço ao pescoço, muito educado no trato e como não podia deixar de ser, acompanhada de um cachimbo que insistia em empestar a sala.
Antes do almoço, tivemos tempo de conversar um pouco e logo percebi que a filha já tinha contado tudo o que sabia a meu respeito. Foi durante essa pequena conversa que surgiu a tão esperada oportunidade para lhe falar da minha poesia.
  - A Filomena disse-me que era poeta...
  - Longe de mim ser considerado um poeta. - Respondi eu, recorrendo à minha pequena modéstia – Escrevo algumas coisas. Coisas sentidas que me vão na alma.
  - Pois, eu não sei se a minha filha lhe disse, mas sou proprietário de uma editora.
  - Sinceramente, se o mencionou, não me recordo.
Talvez a minha mostra de desinteresse não o levasse a pensar que estava a usar a filha para … o que estava a usar a filha.
  - Teria muito gosto em ler alguns dos seus textos. Ultimamente têm surgido novos escritores com bons trabalhos e quem sabe, poderá ser o seu caso. Já tem muita coisa escrita?
  - Bem,... Tenho para cima de cinquenta poemas escritos. Seria para mim uma honra ter alguém como o senhor, a analisar as minhas obras.
A lisonja parecia surtir um bom efeito, tanto na filha como no pai.
  - Já deu mais ou menos para perceber o que a minha filha viu em si. Nota-se que é um cavalheiro e isso é muito raro nos dias que correm. Pois bem, partindo do pressuposto que não trouxe as suas obras consigo, se estiver interessado, podemos encontrarmo-nos amanhã para mas entregar. Não precisa de trazer tudo o que tem, basta que escolha os que considerar serem os melhores vinte.
  - Realmente não as trouxe. Nunca poderia imaginar que isto ia suceder. Mas fico-lhe muito agradecido pela oportunidade que me dá e ficamos assim combinados.
  - Óptimo! Vamos então almoçar, que já está na hora. Pelo menos é o que o meu estômago indica.
Agora, sim! Estava lançado. Tudo ia de vento em popa. E nem tinha precisado de muito; um pouco de falsa modéstia, uma pitada de cavalheirismo, uns elogios q.b., e tinha finalmente conseguido o que queria. Estava tão radiante que até a Filomena me parecia mais bonita.
Nessa mesma noite dediquei-me à escolha dos poemas. Não consegui dormir muito bem, devido à ansiedade. O meu lado pessimista e o meu lado optimista dialogavam insurdecedoramente na minha cabeça. Um lado dizia que eu não seria bem-sucedido e que as minhas poesias nem davam para leitura de casa de banho, o outro lado desmentia, dizendo que era um grande poeta. Um lado dizia que o facto de me aproveitar de Filomena era imoral, o outro dizia que ela até tinha sorte por alguém se interessar por ela, mesmo que fosse por proveito próprio. Um lado dizia que eu ia vingar como escritor, o outro dizia que o mais certo era acabar como sem abrigo, a arrumar carros, recitando os meus poemas em troca de umas moedas.
Finalmente, chegou a hora. Pelo caminho o meu pessimismo continuava a interferir um pouco com as minhas pernas, parecendo querer dissuadir-me de avançar. Mas o meu sonho era mais forte e no meio de um turbilhão de dilemas, cheguei à porta da editora. Ajeitei a única gravata que tinha, respirei fundo e entrei.
  - Bom dia!
  - Bom dia! Posso ajudá-lo?
  - Sim, eu tenho hora marcada com o senhor Brito.
  - Quem devo anunciar?
  - Jacinto Gomes.
  - Um momento, por favor. Sr. Brito, está aqui o senhor Jacinto Gomes. Diz que tem hora marcada consigo... Com certeza. Faça o favor de entrar.
  - Obrigado.
Fui recebido com um enorme sorriso, o que me levou a respirar de alívio, por tudo o que se tinha passado no dia anterior não fazer apenas parte do meu imaginário.
   - Como está, Jacinto?
   - Bem, obrigado, Sr. Brito. Mais uma vez, obrigado por me receber.
   - Ora, essa! Sou um homem de uma só palavra. Então o que me traz?
   - Bem, aqui estão o que considero serem os meus melhores originais.
  - Muito bem. Ainda bem que mencionou a palavra “originais”, porque ontem esqueci-me de lhe perguntar... Já alguma vez editou algum trabalho seu?
   - Não, mas isso traz alguma desvantagem?
   - Não, de todo. Mera curiosidade. Muito bem, vou então analisar o seu trabalho e assim que possível, entro em contacto consigo.
   - Muito obrigado, Sr. Brito. Ficarei à espera.
Agora vinha o mais difícil, esperar impacientemente pela resposta, fugindo das investidas de Filomena.
Todos os dias me ligava e eu sempre que podia, inventava desculpas para evitá-la. Quando não podia, lá tinha que fazer das tripas coração e encontrar-me com ela, sempre em sítios públicos e, de preferência, atulhados de gente. Consegui pelo menos convencê-la de que sexo só depois do casamento. Não ficou muito satisfeita com o meu excesso de princípios, mas por gostar tanto de mim, assentiu.
Essa também era uma das razões do meu desespero. Filomena era boa pessoa e há muito que ninguém demonstrava tanto carinho e cuidado comigo. Sentia-me mal por a usar daquela maneira, mas agora não era de todo o momento para acabar com tudo.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Aventuras e desventuras de um poeta (2ª parte)

Gostava do Tó porque nunca questionou esta minha maneira de ser, mas como comum mortal, um dia não hesitou em comentar a minha estranha forma de estar na vida.
  - Bem, - disse ele, vendo-me a escrever no meu bloco, apanhando-me num momento de inspiração – da maneira como escreves, já deves ter pr'aí uns dez volumes, prontos para serem editados.
  - Dez volumes, não digo, mas tenho algumas coisas escritas que gostava de publicar.
  - E porque não o fazes?
  - Já pensei nisso, mas nem sei por onde começar. Além de o dinheiro ser pouco, precisava de alguém que lesse os meus manuscritos e que me desse um parecer. Só assim poderei saber se prestam ou não.
  - Pois, eu não percebo nada disso, e muitas vezes nem percebo metade do que escreves, mas conheço uma “garina” que...
  - Lá vens tu com as “garinas”! Já te disse que a minha onda é outra.
  - Deixa-me falar! O que eu ia a dizer é que conheço uma “garina”, que é filha de um “carola”, que é dono de uma pequena editora. Acho que se chama Filomena. Podia arranjar-te um “caldinho” com ela e assim chegavas ao “cota”.
Eu não estava com muita vontade de entrar nos esquemas do Tó, nem em caldinhos, mas a ânsia de ver os meus trabalhos avaliados por uma editora, falou mais alto. Era como se tivesse umas palas nos olhos como os cavalos e apenas a meta se enquadrasse no meu ângulo de visão. Reticente, mas esperançoso, lá combinei com o Tó uma saída a quatro, com o intuito de conhecer Filomena.
Arranjei-me o melhor que pude - dada a minha condição monetária, o meu guarda-fatos não era nenhuma loja Armani – e lá fui eu.
Tínhamos combinado ir buscar Filomena a casa e assim foi, um pouco amassados no Mini do Tó, chegamos finalmente à porta da enorme vivenda. A avaliar pela fachada da casa, via-se que eram pessoas de algumas posses. O que me levou a questionar o facto dela se relacionar com pessoas como nós, simples e a viverem num bairro social.
Não demorei muito a perceber a razão de tal facto. Filomena era feia. Aliás, Filomena era um camafeu. Na penumbra da noite, imaginei ter-lhe visto um pequeno buço. Facto que constatei como não fazendo parte da minha imaginação, quando a vi com um pouco mais de luz. E se mesmo assim eu estivesse a alucinar e tivesse inventado o buço a que me refiro, todas as dúvidas se dissiparam quando tentámos entrar na discoteca e o porteiro quis obrigar Filomena a pagar a entrada, alegando que só as senhoras estavam isentas de pagamento.
A noite parecia não ter fim. Sempre detestei discotecas, aquela música ensurdecedora não era de todo o meu ambiente e não me dava muitas hipóteses de chegar à fala com o meu par de dança. Se é que se podia chamar ao que eu tentava fazer no meio da pista, de dançar. Quando pensava desistir da humilhação de que estava a ser alvo pelos verdadeiros dançarinos que me rodeavam, dizia para mim mesmo que tudo aquilo valeria a pena em nome da minha arte e do meu futuro como escritor, e lá ficava mais uma hora.
Enquanto isso podia ver a Filomena toda contente, piscando o olho ao Tó, em sinal de cumplicidade, como que a dizer que tinha feito a escolha acertada em escolher-me como acompanhante. Logo de seguida podia ver a cara do Tó, a rir-se para mim e a mostrar o polegar levantado em tom de aprovação, dizendo com os olhos “esta já está no papo”.
Estafado e desmoralizado, decidi sentar-me e pedir mais uma cerveja. Talvez o álcool me ajudasse a ultrapassar aquele filme de terror. Ao ver-me naquele estado, o Tó aproximou-se e tentou animar-me:
  - Então, meu! A miúda parece gostar de ti, hem?
  - Que bom para ela.
  - Então, meu. Não sejas tão pessimista. Olha, ela agora está no ponto. Isto foi só o aquecimento.
  - Tu nem me digas uma coisa dessas. Se isto é o aquecimento, quando acabar a corrida, estou pronto para me lavarem os pés na morgue.
  - Que exagero! Só tens que a levar lá fora para apanhar um pouco de ar.
  - E esperar que recupere as forças? Estás louco! Assim nunca mais me livro dela.
  - Não, tosco! Toma, leva a chave do Mini e convida-a a entrar para conversarem e se conhecerem melhor. Depois, quando ela estiver louca com as tuas poesias, dás o golpe e fazes com que te convide a ir lá a casa.
Embora o medo de ser violado ou algo pior me recomendasse a não dar ouvidos ao meu amigo, não podia deixar de me lembrar que tudo aquilo era apenas um meio para atingir um fim. Era para isso que ali estava e por momentos a ideia dele fez todo o sentido. Bebi o que restava da minha cerveja, na vã esperança de que o álcool me entorpecesse as ideias e embiquei na direcção de Filomena, que dançava como uma louca no meio da pista. Depois de trinta e sete encontrões e quarenta e duas pisadelas, cheguei finalmente ao pé dela e gritei-lhe ao ouvido:
  - Queres ir até lá fora apanhar um pouco de ar?
Contrariamente ao que esperava, tal era a excitação em que se encontrava, Filomena respondeu:
  - Estava a ver que nunca mais pedias!
Carrancudo, lá fui eu seguido por ela, tal como um condenado seguido do seu carrasco, sobre o olhar atento e de escárnio do Tó.
Dirigi-me apressadamente ao carro, não sabendo muito bem o que fazer depois, mas constatando que Filomena ficara feliz com a minha ousadia, nem sequer querendo imaginar que ideias escabrosas lhe passavam pela cabeça. Sentei-me no banco do condutor, esfregando as mãos, não porque tivesse frio, mas sim porque não sabia o que fazer com elas.
Felizmente ela não deixou muito espaço para o constrangimento que se cria em locais como os elevadores e começou por meter conversa.
  - O Tó disse-me que és um poeta... É verdade?
  - Escrevo umas coisas.
  - Acho isso o máximo. O meu pai é dono de uma editora
  - Ai sim? O Tó nunca mencionou isso comigo.
  - E o que disse ele a meu respeito? Espero que coisas boas.
  - Bem, apenas me disse que conhecia uma rapariga muito gira e que era capaz de ser engraçado sairmos uma noite destas.
Estava a dar o meu melhor, se tivermos em conta que não conseguia desviar a minha atenção do buço de Filomena. De qualquer forma, estava a resultar, visto que senti o calor do seu corpo, chegando-se a mim numa pose de estrela de cinema, com um sorriso rasgado, qual felino que se prepara para atacar a presa. Isto tornou-se para mim um incómodo, mas a vozinha na minha cabeça continuava a martelar a frase “um meio para atingir um fim”.
Foi aí que percebi na realidade, como eram pequenos os Minis. Por mais que me tentasse afastar dela, não havia por onde fugir ao inevitável beijo. Sustive a respiração e cerrei os olhos, pedindo a Deus que não custasse muito. Filomena mudou de direcção e sussurrou-me ao ouvido:
  - Recita-me um poema romântico.
Abri os olhos a medo e apanhado desprevenido, perguntei:
  - Agora?
  - Sim, agora. Improvisa o que te vai na alma e mostra-me o poeta que há em ti.
Por momentos parecia que estava no filme do exorcista, pois a sua voz mudou de cana rachada para um tom grave e arrastado. Senti a mão dela na minha perna, deslizando em direcção à virilha, sem intenções de parar. Tinha que agir rápido, para a distrair, logo comecei a improvisar:

  Oh! Minha musa encantada
  Desenhada como só Deus pode
  Sempre que vejo o teu rosto
  Só penso no …

A palavra bigode era a única que me vinha à cabeça, mas era como dar um tiro no pé proferi-la. Rematei como pude dadas as circunstâncias:
  - Só penso numa linda ode
  - Oh! Meu poeta!
E dito isto, lá me espetou um beijo, cheio de língua, bigode e o resto que nem me atrevo a pronunciar. Desta vez nem tive tempo de cerrar os olhos e tomada pela agilidade lançou-se para cima de mim, como se me fosse engolir, desafiando as leis da física, como se o Mini tivesse de repente, passado a um pesado de passageiros.
A muito custo lá consegui abrir a porta, saindo disparado do carro, aterrando de costas no alcatrão. Por momentos tive a nítida sensação que aquele seria um preço demasiado alto a pagar pela arte, mas a vozinha na minha cabeça não me dava descanso. Recuperando o folego, entrei de novo no carro, dizendo que estava bem. Mas não estava. Tinha que arranjar maneira de travar as suas investidas e de prosseguir com o meu plano. Foi então que me lembrei de algo e antes que fosse atacado novamente, expliquei:
  - Sabes, Filomena, fico muito lisonjeado que uma mulher como tu se interesse por um tipo como eu, mas...
 - Que estás pr'aí a dizer. Tu não és um tipo qualquer, tu és um poeta. O meu poeta!
E lá vinha ela outra vez, mas desta vez eu estava preparado.
  - Sim, mas o que quero dizer é que eu sou um homem novo, mas com princípios antiquados. Não sou do tipo de homem que falta ao respeito a senhoras, num qualquer parque de estacionamento. Comigo tem que ser tudo como manda o figurino. Sei que não nos conhecemos há muito tempo, mas se é para algum tipo de relacionamento, temos que ir com calma. Queria, por exemplo, conhecer os teus pais, para que saibam que a filha não anda por aí com um qualquer. Eu sou um homem que assumo as minhas responsabilidades.
- Oh! Querido! Mas isso já não se usa.
- Eu sei que é um pouco antiquada a minha maneira de pensar, mas tendo sido criado no seio de uma família de bons princípios, é assim que quero que as coisas sejam entre nós. Isto é, se tu quiseres...
Ansiava para que a resposta fosse negativa, ao menos assim, poderia fugir daquele martírio. Mas o efeito foi o contrário e Filomena ficou ainda mais interessada na minha pessoa.
  - És realmente um cavalheiro! Nunca pensei vir a encontrar uma pessoa como tu nos dias que correm. Tens razão. Quando o que sentimos é tão profundo como o que nós tivemos, temos que fazer tudo como deve ser.
Não estava muito certo das suas palavras, pois para mim nada tinha acontecido entre nós, a não ser o episódio onde eu fugi à sua investida, correndo o risco de fazer um traumatismo craniano, mas continuei a fazer o meu papel de cavalheiro.
  - Sendo assim, penso que se costuma dizer “as senhoras primeiro”, e como tal quero que me leves a conhecer a tua família. Depois apresento-te a minha e podemos oficializar o nosso namoro.
Aquilo ia de mal a pior. Sempre que pensava que estava a ganhar pontos, ela puxava-me o tapete. Agora era tarde para voltar atrás e numa voz sumida pelo medo, assenti.
  - Está bem. Se é isso que queres, podemos combinar qualquer coisa...
  - Óptimo! Que tal amanhã à noite? Não quero fazer-me de convidada, mas quanto mais depressa oficializarmos a coisa, mais tempo temos para viver a nossa paixão.
A minha cabeça andava a mil à hora. Era a vozinha na minha cabeça, era a voz de cana rachada dela e eram as consequências que levá-la lá a casa podiam despoletar. Mais uma vez, a vozinha venceu e num tom mais sumido ainda, voltei a concordar com Filomena.
  - Sim, parece-me bem...
Nisto apareceu o Tó e a namorada para salvarem o que restava da minha noite. O resto não me recordo, tal não foi a situação traumática pela qual passei.

(Continua...)

(Imagem retirada da Internet)

terça-feira, 22 de maio de 2012

Aventuras e desventuras de um poeta


A vida sempre foi madrasta comigo, mas nunca me desmoralizei com isso. Quem tem o escape da imaginação nunca está só. E no meu mundo, sítio a que alguns chamam de alucinação ou pura maluqueira, sempre consegui ter tudo ou quase tudo o que precisava.
Desde muito novo que sei que o meu cérebro não é igual ao dos restantes mortais. E se não for pela pessoa que sou, é com certeza pelas várias personagens que habitam na minha cabeça e que dão vida ao mundo que entendo ser o meu lar.
E assim vou vivendo os meus dias, na esperança que, seja através de uma ou outra personagem das minhas inúmeras personalidades, haja um vencedor, um artista ou simplesmente um poeta que se destaque no mundo dos outros.
Os outros de que falo, dividem-se em duas espécies destintas: os que são de sangue e os que são de ar. Os de sangue serão todos aqueles que não tive oportunidade de escolher, ou seja, a família. Os de ar, são todos os outros que, conheça pessoalmente ou não, respiram o mesmo ar que eu. Em boa verdade vos digo que entre uns e outros, venha o Diabo e escolha. Não sei qual das duas é mais prejudicial à minha existência. Começo então por descrever os da primeira espécie, os familiares.
Em minha casa vivem cinco pessoas, se excluirmos o cão que muitas vezes é mais bem tratado do que eu. Desta feita, temos a minha mãe, pessoa que mais amo neste mundo, mais que não seja pelo facto de me ter dado à luz. O meu padrasto, pedreiro de profissão e bronco de vocação. O meu meio-irmão, tendo a metade que me tocou, ser a herdada do pai dele. A minha avó materna, surda que nem uma porta, e com a qual só privei de perto desde que teve uma trombose e precisou da filha para ter um tecto, roupa lavada e comida em cima da mesa. O meu padrasto nunca viu com bons olhos o facto da velha morar lá em casa, mas todos os finais de cada mês lá chega mais um cheque que o faz lembrar a razão de a aturar. E claro, eu, o eterno poeta e sonhador que tem que se refugiar num mundo muito próprio para manter o que lhe resta da sua sanidade mental.
Namorada é coisa que não tenho, nunca tive muita vocação nem tempo para arranjar uma. Ou pura e simplesmente, nunca ouve ninguém que me despertasse curiosidade suficiente para andar de mão dada pelo parque. Talvez por isso tenha ouvido muitas vezes o meu padrasto, à hora do jantar, dirigindo-se à minha mãe como se eu não estivesse presente na sala, com a célebre frase “Oh! Glória, aqui o teu filho deve ser panasca. Ai se eu fosse novo, não havia uma que me escapasse!” Sei que este é mais um motivo para me humilhar e encontrar algo que divirta o filho, visto que divide o tempo entre o trabalho, a tasca e os jogos de futebol a que assiste ruidosamente na televisão, não tendo por isso tempo de qualidade com o meu meio-irmão. Mas o que penso que lhe pesa realmente e o que aflige a minha mãe, é o facto de continuar a viver com eles tendo 35 anos de idade.
Não é verdade o que o meu padrasto diz, não sou homossexual. Já tive alguns casos de interacção intima com o sexo oposto, sendo que o último até durou pra cima de três horas. Mas quanto ao constituir família, não sinto necessidade disso. A escrita preenche grande parte do meu tempo e é a minha verdadeira paixão.
Quanto aos amigos, se é que posso chamar o Tó de amigo, é o único que tenho. Somos vizinhos desde que vim viver aqui para o bairro, mas nem sempre fomos amigos. Aliás, quando conheci o Tó a nossa relação era mais ou menos uma troca: ele dava e eu apanhava.
O Tó era daqueles miúdos que gostava de malhar nos outros e quando olhava para mim toda a sua raiva vinha ao de cima. Isto só mudou no dia em que o feitiço se virou contra o feiticeiro e fui dar com ele a levar um tareão de três manfias lá do bairro. Ainda fiquei ali a assistir à cena, por algum tempo, mas quando achei que ele já tinha levado demais, gritei “A policia! Vem lá a polícia!”. Os gorilas correram para safar a pele, deixando o Tó todo amassado, estendido no chão. Claro que não lhe limpei as feridas, ou não fosse a situação uma espécie de vingança, proferida por mãos alheias. Simplesmente virei-lhe as costas e segui caminho.
Depois disto o Tó nunca mais foi o mesmo comigo. Passei mesmo de saco de pancada a protegido. A relação de troca continuou, visto que pagava a minha segurança pessoal com a minha inteligência, ajudando-o com os trabalhos de casa e com explicações para os testes.
Gostava de definir a nossa amizade como dois em um, isto é, eu, o cérebro e o Tó, os músculos. E que boa dupla fazíamos nós, até ao dia em que ele desistiu da escola e foi trabalhar numa oficina. Realmente tudo o que tinha a ver com carros era a verdadeira paixão do Tó desde pequenino. Era isso e as mulheres. De semana a semana tinha uma “garina” nova, como lhes chamava.
Mesmo depois de desistir dos estudos continuámos a sair juntos, coisa que por vezes me desagradava, visto que ele ia sempre acompanhado e eu, segurava na vela. Ou por outra, segurava no bloco e na caneta que sempre me acompanhavam para onde ia, não fosse o momento dar-me uma inspiração divina ou ouvir um sussurro dos falecidos poetas.

(Continua)

terça-feira, 1 de maio de 2012

1º de Maio - Agora com 50% de desconto!

O Sr. Jerónimo Martins decidiu desafiar os que dizem que não há trabalho nem poder de compra em Portugal e escolheu o primeiro de Maio, dia do trabalhador, para o fazer. Decidiu lançar uma campanha com o desconto de 50% para clientes que adquiram mais de 100 euros em compras nas lojas do Pingo Doce. Não no dia 30 de Abril, não no dia 2 de Maio, mas sim no Dia do Trabalhador. E foi assim que se deu o caos, com lojas esgotadas e obrigadas nalguns casos a encerramentos, devido a conflitos entre clientes, onde foi necessária a presença policial. Passei à porta de uma dessas lojas e digo-vos que aquilo mais parecia um concerto de Tony Carreira no pavilhão Atlântico. Compreendo a euforia. Seria um bónus muito bom se pudéssemos fazer as compras do mês e pagar apenas metade. Acredito que tal como eu, muitas pessoas desistiram só de olhar para a confusão. Pensando bem, o stress de ter que estacionar o carro, esperar horas numa fila, fazer as compras apertados por corredores apinhados de gente, esperar horas na fila para pagar, carregar o carro, esperar na fila de trânsito para sair do estacionamento, chegar a casa, carregar as compras, arrumar tudo..., esquece lá isso. Sem contar com o combustível que se gastou nesta odisseia.
No entanto, não pude deixar de pensar nos trabalhadores do Pingo Doce. Qual será a recompensa por trabalharem a um feriado que é incontestávelmente para e dos trabalhadores, rodeados por uma multidão de clientes? Será que o que receberem por este feriado, compensa o stress e o trabalho a que estão sujeitos? Portugal está a sofrer grandes transformações. o Dia do Trabalhador passou a ser mesmo de trabalho, o Dia da Liberdade passou a ser dia da liberdade por falta de trabalho. E já agora, porque não mudam o significado do Natal? Já que o Natal é quando um Homem quiser, porque é que não fazemos a àrvore em Agosto em plena praia de Carcavelos?
Chamem-me maniaca, digam-me que tenho a mania da conspiração, mas partindo do princípio de que o 1º de Maio é um dia marcado por demonstrações politicas e manifestações dos sindicatos e dos trabalhadores, deduzo que este tipo de "campanhas de desconto" tenham como fundamento desmobilizar os portugueses para deixarem de se manifestar em massa. Em vez de encherem as ruas do país em sinal de protesto, mais vale encher o frigorifico, pois o povo está a ficar com fome e sem forças para grandes caminhadas. A imagem que passamos para fora é de que estamos bem obrigado e até aproveitamos para consumir muito, logo estamos cheios de dinheiro. Os governantes ficam bem na fotografia, os poderosos do comércio enchem os bolsos e ganham favores e o povo fica todo contente por ter tido uns vales de desconto nos bifes de frango. E se pensam que estou a delirar, pensem no que aconteceu no Carnaval. A sátira politica, as matrafonas e até os gigantones foram quase proibidos de sair às ruas. Não se lembraram de oferecer uns vales para comprar leite, se não, o Carnaval por esse país fora tinha sido muito pior.