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sábado, 26 de maio de 2012

Aventuras e desventuras de um poeta (5ª parte)


Um livro pequeno com uma capa sugestiva e um título estranhamente familiar. Chamava-se “Coisas da Alma” e sem me preocupar com o nome do autor, abri-o para ler o primeiro texto. Sentia que nada naquelas palavras era estranho, até que dei por mim a recitar o poema, sem sequer precisar de o ler.
Nunca fui atingido por um raio, mas tenho quase a certeza que se sente o mesmo que senti, ao perceber que aquelas eram as minhas poesias, as mesmas que tinha levado à editora de Brito. As mesmas que, por desânimo e por esquecimento, nunca tinha recuperado. Quando virei a capa em busca do nome de autor, o calor da raiva subiu por mim até se alojar bem no alto do meu crânio, como se quisesse sair disparado. Manuel Sousa Brito.
Como podia ter sido tão estupido ao ponto de ser enganado daquela maneira? Como podia haver gente tão baixa no Mundo, ao ponto de me fazerem o que aquele homem me fizera?
Desesperado, tentei encontrar o Tó e a namorada, para lhes dizer que ia para casa. Não sabia bem que momento era aquele, mas ver um filme não era o que mais queria fazer. Esganar Brito, isso sim, era o que me apetecia naquele momento.
Andei muito, sem sequer me preocupar para onde me levavam os pés. Não sei se o meu subconsciente sabia o que fazia, pois fui direito à porta da editora. Tomado de raiva, peguei numa pedra e rebentei com a montra. O alarme disparou, acordando-me do transe psicológico em que estava e corri para casa, temendo ter sido visto por alguém. Assim que cheguei, corri para o quarto, tentando arranjar maneira de provar que aquelas eram as minhas obras, aquelas eram as minhas “Coisas da Alma”. Nem o título esle se importou em alterar. Tudo aquilo tresandava ao meu talento, mas assinado com o nome dele.
Não havia volta a dar, nunca poderia provar o contrário. Tinha que existir outra maneira de fazer aquele homem sem escrúpulos, pagar.
Dei voltas e mais voltas, pensei até em comprar uma arma, só para o assustar e fazê-lo confessar. Mas Filomena não merecia isso e eu podia acabar preso. Finalmente, perto das quatro da madrugada, tinha em mente um plano para o desmascarar. Cansado, mas entusiasmado com a ideia, consegui adormecer, sabendo que teria uns dias de árduo trabalho pela frente.
Passei dias e noites de volta de tudo o que tinha escrito, arranjando ainda tempo para escrever mais alguns poemas. Passadas duas semanas tinha tudo o que precisava para dar início à minha vingança. Era chegada a hora de lançar o isco e rezar para que Brito tropeçasse na sua própria casca de banana.
Em passo firme e decidido, sem deixar os meus amiguinhos do sótão entrarem em diálogo, dirigi-me à editora e pedi para falar com ele. Com a maior cara de pau do mundo, cumprimentou-me alegremente.
  - Como está, Jacinto? Bons olhos o vejam! Devo dizer-lhe que fiquei muito desapontado por saber que o seu namoro com a minha filha, terminou.
  - Bem, continuamos amigos. E como está Filomena?
  -Lá anda, na vida dela. Pessoalmente não gosto muito do tipo com quem ela anda, mas há muito que deixei de poder fazer algo contra as escolhas da minha filha. Resta-me rezar para que seja feliz.
Quanto mais ouvia a sua voz, mais me apetecia apertar-lhe o lenço que tinha ao pescoço e enfiar-lhe o cachimbo no... Bem, adiante.
  - Mas penso que não terá sido sobre Filomena que me tenha vindo falar, pois não?
  - Não, na verdade venho cá por causa de um amigo. Sabe, tenho um amigo que escreve poemas, tal como eu. A única diferença entre nós é que ele tem dinheiro para as publicar. Por isso, lembrei-me de si. Acha que pode dar uma vista de olhos no seu trabalho?
  - Claro, meu rapaz! Mande cá o seu amigo que depois logo se vê.
  - Bem, ele pediu-me que o trouxesse em nome dele. Por isso, posso deixá-lo já.
  - Sendo assim, não vejo inconveniente nenhum nisso. Este seu amigo já publicou alguma coisa?
  - Não, é a primeira vez, tal como eu.
Agora tinha quase a certeza que Brito tinha ficado interessado.
  - Muito bem. Pode ficar tranquilo, que eu vou ver o que se pode fazer pelo seu amigo.
  - Muito obrigado, Sr. Brito. Este amigo é como se fosse um irmão para mim e por isso gostava que tudo desse certo.
  - Bem, se ele tiver a qualidade que você tem, pode muito bem vingar.
  - Não querendo menosprezar-me, ele é muito melhor. Digamos que tem mais experiência. 
Saí dali aliviado por não ter que continuar a respirar o mesmo ar que ele, e com a nítida sensação de dever cumprido. Agora era esperar que mordesse o isco.
Claro que esperei mais do que queria. A ansiedade era o truque de Brito pra fazer com que cometessem erros, dos quais lhe provinha o lucro. Mas desta vez eu estava preparado para esperar, pois - continuando com os provérbios populares, “a vingança é um prato que se serve frio”.
Entretanto, fui mostrando à minha amiga depressão que também dela, tinha aprendido a defender-me. Comecei por criar uma rotina saudável, alimentando-me melhor e indo para a cama a horas decentes, saindo sempre que podia, para me divertir. O Tó e a minha mãe foram as pessoas que mais notaram a minha mudança, talvez mostrando assim que eram as pessoas que realmente se preocupavam comigo. O Tó, por me ver com melhor aspecto e a minha mãe por ver a comida a desaparecer do frigorífico.
Um dia, numa das nossas saídas nocturnas, encontrámos a Filomena e o namorado. Gostei imenso de a ver. Já não tinha buço e estava com um ar felicíssimo. Apresentou-me o namorado, que me pareceu ser um bom homem. Pelo menos, para dono de uma editora, não tinha as peneiras que o pai dela tinha. Depois de uma longa e animada conversa, entregou-me o seu cartão.
  - Quando se decidir a publicar, não hesite em falar comigo. A Filomena fala muito sobre si e sendo ela tão boa pessoa, decerto que também o é. - Ao ouvido, sussurrou-me – Não sai nada ao pai.
Fiquei surpreso com o comentário, mas não dei importância.
Dei importância sim, ao cartão que me entregou. Seria aquela uma nova maneira de tentar editar um livro? Provavelmente, não.
Embora aquele homem aparentasse ser boa pessoa, “gato escaldado, de água fria tem medo” e nada me garantia que não me pudesse enganar ou pedir rios de dinheiro, em troca de uma publicação. Em todo o caso, não fazia mal guardar aquele contacto.
Em casa as coisas iam de mal a pior. A minha mãe, queixava-se pela falta de dinheiro e de ajuda para arrumar a casa. A minha avó, surda como era, tinha sempre a televisão em altos berros. O meu meio-irmão, quando não estava no computador ou a jogar play-station, apanhava-me fora de casa e mexia em tudo o que queria no meu quarto. À noite tudo isto era regado com a presença fantástica do meu padrasto e as suas piadinhas de mau gosto.
Precisava urgentemente de sair daquele manicómio. Mas não era fácil. O que ganhava na bomba de gasolina onde trabalhava, nem dava para mandar cantar um cego, quanto mais para morar sozinho.
E foi neste contexto que meti, mais uma vez, argolada. Foi à hora do jantar que, como sempre, começou a discussão. O meu padrasto tinha bebido uns copitos, coisa também normal e que lhe aguçava a língua.
  - É da minha vista ou estás mais gordo? - Perguntou-me ele.
  - É da sua vista. Estou na mesma.
  - Não estás não. Estás mais gordo. Mas nem por isso trazes mais dinheiro para casa.
  - O que é que quer dizer com isso?
  - Quero dizer que a vida está má para todos e que isto aqui não é nenhuma pensão. A nossa sorte é que, sem contar com aquela feiosa que trouxeste cá a casa um dia destes, não trazes cá ninguém. Se não era ainda maior a despesa.
  - Oh! Horácio, deixo o miúdo! - Interrompeu a minha mãe.
  - O problema é mesmo esse! É que tu és responsável, porque ainda o tratas como se fosse um miúdo. Um marmanjão de trinta e cinco anos!
  - Mas responsável de quê? - Perguntei eu, num tom exaltado.
  - Responsável por tu não ires à tua vida!
  - Muito bem, se é esse o vosso maior problema, eu saio hoje mesmo.
  - Não sejas parvo, filho! E para onde irias?
  - Se calhar vai ter com a feiosa, para fazerem uns feiinhos.
Algo de muito negro se apoderou do meu corpo, algo tão negro como carvão. O que era, não sei dizer, apenas sei que tinha a força de dez homens. Talvez fossem os anos que passei a ser humilhado por aquele ser desprezível, talvez fosse o facto de ter aprendido uma lição de vida, ou simplesmente tinha aprendido finalmente a defender-me e a dizer basta.
Levantei-me da mesa, e concentrei toda a minha energia no punho direito, acertando em cheio no nariz de Horácio. Depois, simplesmente peguei no blusão e saí, deixando a minha mãe a apanhar os cacos e o desprezível estatelado no chão.
Sabia que não podia voltar para casa. Mas não tinha para onde ir. Telefonei ao Tó. Fiquei em casa dele até ao fim daquele mês, e ter dinheiro para alugar um quarto.
Até tive alguma sorte, visto que a senhora que me alugou o quarto me lavava a roupa sem pedir mais por isso. Disse que eu lhe fazia lembrar um neto que tinha, mas penso que só fisicamente, pois não devia existir ninguém, tão azarado como eu, no mundo.
Com tanto a acontecer na minha vida já quase nem me lembrava de Brito, quando recebi o seu telefonema. Combinámos encontrar-nos na editora.

(Continua)
 
(Imagem retirada da Internet)

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