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quarta-feira, 23 de maio de 2012

Aventuras e desventuras de um poeta (2ª parte)

Gostava do Tó porque nunca questionou esta minha maneira de ser, mas como comum mortal, um dia não hesitou em comentar a minha estranha forma de estar na vida.
  - Bem, - disse ele, vendo-me a escrever no meu bloco, apanhando-me num momento de inspiração – da maneira como escreves, já deves ter pr'aí uns dez volumes, prontos para serem editados.
  - Dez volumes, não digo, mas tenho algumas coisas escritas que gostava de publicar.
  - E porque não o fazes?
  - Já pensei nisso, mas nem sei por onde começar. Além de o dinheiro ser pouco, precisava de alguém que lesse os meus manuscritos e que me desse um parecer. Só assim poderei saber se prestam ou não.
  - Pois, eu não percebo nada disso, e muitas vezes nem percebo metade do que escreves, mas conheço uma “garina” que...
  - Lá vens tu com as “garinas”! Já te disse que a minha onda é outra.
  - Deixa-me falar! O que eu ia a dizer é que conheço uma “garina”, que é filha de um “carola”, que é dono de uma pequena editora. Acho que se chama Filomena. Podia arranjar-te um “caldinho” com ela e assim chegavas ao “cota”.
Eu não estava com muita vontade de entrar nos esquemas do Tó, nem em caldinhos, mas a ânsia de ver os meus trabalhos avaliados por uma editora, falou mais alto. Era como se tivesse umas palas nos olhos como os cavalos e apenas a meta se enquadrasse no meu ângulo de visão. Reticente, mas esperançoso, lá combinei com o Tó uma saída a quatro, com o intuito de conhecer Filomena.
Arranjei-me o melhor que pude - dada a minha condição monetária, o meu guarda-fatos não era nenhuma loja Armani – e lá fui eu.
Tínhamos combinado ir buscar Filomena a casa e assim foi, um pouco amassados no Mini do Tó, chegamos finalmente à porta da enorme vivenda. A avaliar pela fachada da casa, via-se que eram pessoas de algumas posses. O que me levou a questionar o facto dela se relacionar com pessoas como nós, simples e a viverem num bairro social.
Não demorei muito a perceber a razão de tal facto. Filomena era feia. Aliás, Filomena era um camafeu. Na penumbra da noite, imaginei ter-lhe visto um pequeno buço. Facto que constatei como não fazendo parte da minha imaginação, quando a vi com um pouco mais de luz. E se mesmo assim eu estivesse a alucinar e tivesse inventado o buço a que me refiro, todas as dúvidas se dissiparam quando tentámos entrar na discoteca e o porteiro quis obrigar Filomena a pagar a entrada, alegando que só as senhoras estavam isentas de pagamento.
A noite parecia não ter fim. Sempre detestei discotecas, aquela música ensurdecedora não era de todo o meu ambiente e não me dava muitas hipóteses de chegar à fala com o meu par de dança. Se é que se podia chamar ao que eu tentava fazer no meio da pista, de dançar. Quando pensava desistir da humilhação de que estava a ser alvo pelos verdadeiros dançarinos que me rodeavam, dizia para mim mesmo que tudo aquilo valeria a pena em nome da minha arte e do meu futuro como escritor, e lá ficava mais uma hora.
Enquanto isso podia ver a Filomena toda contente, piscando o olho ao Tó, em sinal de cumplicidade, como que a dizer que tinha feito a escolha acertada em escolher-me como acompanhante. Logo de seguida podia ver a cara do Tó, a rir-se para mim e a mostrar o polegar levantado em tom de aprovação, dizendo com os olhos “esta já está no papo”.
Estafado e desmoralizado, decidi sentar-me e pedir mais uma cerveja. Talvez o álcool me ajudasse a ultrapassar aquele filme de terror. Ao ver-me naquele estado, o Tó aproximou-se e tentou animar-me:
  - Então, meu! A miúda parece gostar de ti, hem?
  - Que bom para ela.
  - Então, meu. Não sejas tão pessimista. Olha, ela agora está no ponto. Isto foi só o aquecimento.
  - Tu nem me digas uma coisa dessas. Se isto é o aquecimento, quando acabar a corrida, estou pronto para me lavarem os pés na morgue.
  - Que exagero! Só tens que a levar lá fora para apanhar um pouco de ar.
  - E esperar que recupere as forças? Estás louco! Assim nunca mais me livro dela.
  - Não, tosco! Toma, leva a chave do Mini e convida-a a entrar para conversarem e se conhecerem melhor. Depois, quando ela estiver louca com as tuas poesias, dás o golpe e fazes com que te convide a ir lá a casa.
Embora o medo de ser violado ou algo pior me recomendasse a não dar ouvidos ao meu amigo, não podia deixar de me lembrar que tudo aquilo era apenas um meio para atingir um fim. Era para isso que ali estava e por momentos a ideia dele fez todo o sentido. Bebi o que restava da minha cerveja, na vã esperança de que o álcool me entorpecesse as ideias e embiquei na direcção de Filomena, que dançava como uma louca no meio da pista. Depois de trinta e sete encontrões e quarenta e duas pisadelas, cheguei finalmente ao pé dela e gritei-lhe ao ouvido:
  - Queres ir até lá fora apanhar um pouco de ar?
Contrariamente ao que esperava, tal era a excitação em que se encontrava, Filomena respondeu:
  - Estava a ver que nunca mais pedias!
Carrancudo, lá fui eu seguido por ela, tal como um condenado seguido do seu carrasco, sobre o olhar atento e de escárnio do Tó.
Dirigi-me apressadamente ao carro, não sabendo muito bem o que fazer depois, mas constatando que Filomena ficara feliz com a minha ousadia, nem sequer querendo imaginar que ideias escabrosas lhe passavam pela cabeça. Sentei-me no banco do condutor, esfregando as mãos, não porque tivesse frio, mas sim porque não sabia o que fazer com elas.
Felizmente ela não deixou muito espaço para o constrangimento que se cria em locais como os elevadores e começou por meter conversa.
  - O Tó disse-me que és um poeta... É verdade?
  - Escrevo umas coisas.
  - Acho isso o máximo. O meu pai é dono de uma editora
  - Ai sim? O Tó nunca mencionou isso comigo.
  - E o que disse ele a meu respeito? Espero que coisas boas.
  - Bem, apenas me disse que conhecia uma rapariga muito gira e que era capaz de ser engraçado sairmos uma noite destas.
Estava a dar o meu melhor, se tivermos em conta que não conseguia desviar a minha atenção do buço de Filomena. De qualquer forma, estava a resultar, visto que senti o calor do seu corpo, chegando-se a mim numa pose de estrela de cinema, com um sorriso rasgado, qual felino que se prepara para atacar a presa. Isto tornou-se para mim um incómodo, mas a vozinha na minha cabeça continuava a martelar a frase “um meio para atingir um fim”.
Foi aí que percebi na realidade, como eram pequenos os Minis. Por mais que me tentasse afastar dela, não havia por onde fugir ao inevitável beijo. Sustive a respiração e cerrei os olhos, pedindo a Deus que não custasse muito. Filomena mudou de direcção e sussurrou-me ao ouvido:
  - Recita-me um poema romântico.
Abri os olhos a medo e apanhado desprevenido, perguntei:
  - Agora?
  - Sim, agora. Improvisa o que te vai na alma e mostra-me o poeta que há em ti.
Por momentos parecia que estava no filme do exorcista, pois a sua voz mudou de cana rachada para um tom grave e arrastado. Senti a mão dela na minha perna, deslizando em direcção à virilha, sem intenções de parar. Tinha que agir rápido, para a distrair, logo comecei a improvisar:

  Oh! Minha musa encantada
  Desenhada como só Deus pode
  Sempre que vejo o teu rosto
  Só penso no …

A palavra bigode era a única que me vinha à cabeça, mas era como dar um tiro no pé proferi-la. Rematei como pude dadas as circunstâncias:
  - Só penso numa linda ode
  - Oh! Meu poeta!
E dito isto, lá me espetou um beijo, cheio de língua, bigode e o resto que nem me atrevo a pronunciar. Desta vez nem tive tempo de cerrar os olhos e tomada pela agilidade lançou-se para cima de mim, como se me fosse engolir, desafiando as leis da física, como se o Mini tivesse de repente, passado a um pesado de passageiros.
A muito custo lá consegui abrir a porta, saindo disparado do carro, aterrando de costas no alcatrão. Por momentos tive a nítida sensação que aquele seria um preço demasiado alto a pagar pela arte, mas a vozinha na minha cabeça não me dava descanso. Recuperando o folego, entrei de novo no carro, dizendo que estava bem. Mas não estava. Tinha que arranjar maneira de travar as suas investidas e de prosseguir com o meu plano. Foi então que me lembrei de algo e antes que fosse atacado novamente, expliquei:
  - Sabes, Filomena, fico muito lisonjeado que uma mulher como tu se interesse por um tipo como eu, mas...
 - Que estás pr'aí a dizer. Tu não és um tipo qualquer, tu és um poeta. O meu poeta!
E lá vinha ela outra vez, mas desta vez eu estava preparado.
  - Sim, mas o que quero dizer é que eu sou um homem novo, mas com princípios antiquados. Não sou do tipo de homem que falta ao respeito a senhoras, num qualquer parque de estacionamento. Comigo tem que ser tudo como manda o figurino. Sei que não nos conhecemos há muito tempo, mas se é para algum tipo de relacionamento, temos que ir com calma. Queria, por exemplo, conhecer os teus pais, para que saibam que a filha não anda por aí com um qualquer. Eu sou um homem que assumo as minhas responsabilidades.
- Oh! Querido! Mas isso já não se usa.
- Eu sei que é um pouco antiquada a minha maneira de pensar, mas tendo sido criado no seio de uma família de bons princípios, é assim que quero que as coisas sejam entre nós. Isto é, se tu quiseres...
Ansiava para que a resposta fosse negativa, ao menos assim, poderia fugir daquele martírio. Mas o efeito foi o contrário e Filomena ficou ainda mais interessada na minha pessoa.
  - És realmente um cavalheiro! Nunca pensei vir a encontrar uma pessoa como tu nos dias que correm. Tens razão. Quando o que sentimos é tão profundo como o que nós tivemos, temos que fazer tudo como deve ser.
Não estava muito certo das suas palavras, pois para mim nada tinha acontecido entre nós, a não ser o episódio onde eu fugi à sua investida, correndo o risco de fazer um traumatismo craniano, mas continuei a fazer o meu papel de cavalheiro.
  - Sendo assim, penso que se costuma dizer “as senhoras primeiro”, e como tal quero que me leves a conhecer a tua família. Depois apresento-te a minha e podemos oficializar o nosso namoro.
Aquilo ia de mal a pior. Sempre que pensava que estava a ganhar pontos, ela puxava-me o tapete. Agora era tarde para voltar atrás e numa voz sumida pelo medo, assenti.
  - Está bem. Se é isso que queres, podemos combinar qualquer coisa...
  - Óptimo! Que tal amanhã à noite? Não quero fazer-me de convidada, mas quanto mais depressa oficializarmos a coisa, mais tempo temos para viver a nossa paixão.
A minha cabeça andava a mil à hora. Era a vozinha na minha cabeça, era a voz de cana rachada dela e eram as consequências que levá-la lá a casa podiam despoletar. Mais uma vez, a vozinha venceu e num tom mais sumido ainda, voltei a concordar com Filomena.
  - Sim, parece-me bem...
Nisto apareceu o Tó e a namorada para salvarem o que restava da minha noite. O resto não me recordo, tal não foi a situação traumática pela qual passei.

(Continua...)

(Imagem retirada da Internet)

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