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quinta-feira, 24 de maio de 2012

Aventuras e desventuras de um poeta (3ª parte)



Na manhã seguinte queria continuar com a sensação de amnésia, mas o facto de a receber lá em casa nessa noite, impedia-me de o fazer.
Quem se fartou de gozar comigo foi o Tó. Depois de lhe contar como tinha corrido o meu encontro da noite anterior, fui, como era de esperar, motivo de uma impiedosa chacota. Mas até isso parecia um passeio no parque comparado com o que me esperava nessa noite.
Quando comuniquei à minha família que ia levar uma pessoa lá a casa, as diversas reacções não me deixaram nada descansado. A minha mãe já planeava até o vestido que iria levar ao casamento – tal não era a vontade de me ver pelas costas. O meu padrasto, congratulava-me por finalmente lhe dar mostras de que não era panasca, não sem deixar no ar a sua graça com o comentário infeliz “vê lá se não é um travesti, há que apalpar o material para tirar as dúvidas”. O meu meio-irmão, esse, apenas levantava a cabeça do comando da play-station para rir com os larachas do pai. Até a minha avó, que quando é preciso não ouve nada, se pronunciou sobre o assunto para soltar um “coitada”, em tom de desabafo.
Por que será que quando não queremos que algo aconteça, o relógio parece debochar de nós, apressando os ponteiros no sentido da malfadada hora? Foi o que senti, ao ouvir a campainha a tocar.
Filomena estava mesmo desesperada, ou era o que dava a parecer, visto ter chegado meia hora antes da hora marcada.
Depois das apresentações da praxe, lá nos sentámos à mesa. Tentava falar o mínimo possível, não dando azos a grande diálogo, mas o meu padrasto não me deu tréguas. Tinha ali a hipótese ideal para me humilhar novamente. E assim fez, contando tudo o que me poderia expor ao ridículo, fazendo referência aos meus boxers com corações, contando que em pequenino eu gostava de “limpar o salão” antes de ir para a cama, e sempre intercalando com anedotas alusivas às mulheres feias e de bigode – vá-se lá saber porquê. Mas realmente “o amor é louco, não façam pouco”, e a minha futura namorada continuava a fitar-me com os mais enternecedores olhos que podia expressar.
Finalmente tudo acabou e fui levá-la a casa, com uma sensação de missão meio-cumprida. Os dados estavam lançados, havia que marcar o encontro com o pai dela. No caminho, ainda tentou agarrar-me, recorrendo aos dotes de sedução que pensava que tinha, mas fui firme na minha postura de cavalheiro e combinámos almoçar no dia seguinte em casa dela.
Pensava que depois da provação por que tinha passado, ficaria mas calmo, mas pensei mal. Esta era a minha chance de mostrar o meu trabalho a quem realmente percebia do assunto e, quem sabe, ver finalmente um original meu ser editado. Razão pela qual tinha os nervos em franja.
O pai de Filomena parecia um aristocrata, de lenço ao pescoço, muito educado no trato e como não podia deixar de ser, acompanhada de um cachimbo que insistia em empestar a sala.
Antes do almoço, tivemos tempo de conversar um pouco e logo percebi que a filha já tinha contado tudo o que sabia a meu respeito. Foi durante essa pequena conversa que surgiu a tão esperada oportunidade para lhe falar da minha poesia.
  - A Filomena disse-me que era poeta...
  - Longe de mim ser considerado um poeta. - Respondi eu, recorrendo à minha pequena modéstia – Escrevo algumas coisas. Coisas sentidas que me vão na alma.
  - Pois, eu não sei se a minha filha lhe disse, mas sou proprietário de uma editora.
  - Sinceramente, se o mencionou, não me recordo.
Talvez a minha mostra de desinteresse não o levasse a pensar que estava a usar a filha para … o que estava a usar a filha.
  - Teria muito gosto em ler alguns dos seus textos. Ultimamente têm surgido novos escritores com bons trabalhos e quem sabe, poderá ser o seu caso. Já tem muita coisa escrita?
  - Bem,... Tenho para cima de cinquenta poemas escritos. Seria para mim uma honra ter alguém como o senhor, a analisar as minhas obras.
A lisonja parecia surtir um bom efeito, tanto na filha como no pai.
  - Já deu mais ou menos para perceber o que a minha filha viu em si. Nota-se que é um cavalheiro e isso é muito raro nos dias que correm. Pois bem, partindo do pressuposto que não trouxe as suas obras consigo, se estiver interessado, podemos encontrarmo-nos amanhã para mas entregar. Não precisa de trazer tudo o que tem, basta que escolha os que considerar serem os melhores vinte.
  - Realmente não as trouxe. Nunca poderia imaginar que isto ia suceder. Mas fico-lhe muito agradecido pela oportunidade que me dá e ficamos assim combinados.
  - Óptimo! Vamos então almoçar, que já está na hora. Pelo menos é o que o meu estômago indica.
Agora, sim! Estava lançado. Tudo ia de vento em popa. E nem tinha precisado de muito; um pouco de falsa modéstia, uma pitada de cavalheirismo, uns elogios q.b., e tinha finalmente conseguido o que queria. Estava tão radiante que até a Filomena me parecia mais bonita.
Nessa mesma noite dediquei-me à escolha dos poemas. Não consegui dormir muito bem, devido à ansiedade. O meu lado pessimista e o meu lado optimista dialogavam insurdecedoramente na minha cabeça. Um lado dizia que eu não seria bem-sucedido e que as minhas poesias nem davam para leitura de casa de banho, o outro lado desmentia, dizendo que era um grande poeta. Um lado dizia que o facto de me aproveitar de Filomena era imoral, o outro dizia que ela até tinha sorte por alguém se interessar por ela, mesmo que fosse por proveito próprio. Um lado dizia que eu ia vingar como escritor, o outro dizia que o mais certo era acabar como sem abrigo, a arrumar carros, recitando os meus poemas em troca de umas moedas.
Finalmente, chegou a hora. Pelo caminho o meu pessimismo continuava a interferir um pouco com as minhas pernas, parecendo querer dissuadir-me de avançar. Mas o meu sonho era mais forte e no meio de um turbilhão de dilemas, cheguei à porta da editora. Ajeitei a única gravata que tinha, respirei fundo e entrei.
  - Bom dia!
  - Bom dia! Posso ajudá-lo?
  - Sim, eu tenho hora marcada com o senhor Brito.
  - Quem devo anunciar?
  - Jacinto Gomes.
  - Um momento, por favor. Sr. Brito, está aqui o senhor Jacinto Gomes. Diz que tem hora marcada consigo... Com certeza. Faça o favor de entrar.
  - Obrigado.
Fui recebido com um enorme sorriso, o que me levou a respirar de alívio, por tudo o que se tinha passado no dia anterior não fazer apenas parte do meu imaginário.
   - Como está, Jacinto?
   - Bem, obrigado, Sr. Brito. Mais uma vez, obrigado por me receber.
   - Ora, essa! Sou um homem de uma só palavra. Então o que me traz?
   - Bem, aqui estão o que considero serem os meus melhores originais.
  - Muito bem. Ainda bem que mencionou a palavra “originais”, porque ontem esqueci-me de lhe perguntar... Já alguma vez editou algum trabalho seu?
   - Não, mas isso traz alguma desvantagem?
   - Não, de todo. Mera curiosidade. Muito bem, vou então analisar o seu trabalho e assim que possível, entro em contacto consigo.
   - Muito obrigado, Sr. Brito. Ficarei à espera.
Agora vinha o mais difícil, esperar impacientemente pela resposta, fugindo das investidas de Filomena.
Todos os dias me ligava e eu sempre que podia, inventava desculpas para evitá-la. Quando não podia, lá tinha que fazer das tripas coração e encontrar-me com ela, sempre em sítios públicos e, de preferência, atulhados de gente. Consegui pelo menos convencê-la de que sexo só depois do casamento. Não ficou muito satisfeita com o meu excesso de princípios, mas por gostar tanto de mim, assentiu.
Essa também era uma das razões do meu desespero. Filomena era boa pessoa e há muito que ninguém demonstrava tanto carinho e cuidado comigo. Sentia-me mal por a usar daquela maneira, mas agora não era de todo o momento para acabar com tudo.

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