Somos pequenos demais para entender as voltas
do destino. Somos prematuros quando sentimos que sabemos o que a vida nos
reserva. Não. Nunca poderia imaginar que precisávamos de viver tanto para
compreender o nosso amor. Não acreditaria se me dissessem que teria de passar
tantos anos longe de ti para compreender a dimensão do nosso afecto. A nossa
união só pode ter sido acordada num plano astral divino e incompreensível ao
olhar humano.
Nunca, nem no meu sonho mais inacreditável
entenderia que o nosso primeiro beijo me ligaria a ti desta forma. Tu andavas à
deriva, procurando desesperadamente fugir a uma família que tudo te dava menos
conforto emocional. Eu, recém órfã de pai, empurrada para uma vida que não
queria e que me desamparava a cada passo do caminho. Dois ingredientes
perfeitos para um cenário de paixão apenas possível de ser traduzido com gestos
de ternura. Vivemos grandes aventuras, percorremos quilómetros fugindo a uma
realidade apenas compreendida por nós. Aos olhos dos outros éramos loucos por
sair do conforto do lar rumo a um futuro incerto e pouco promissor. Mas assim
foi e em tempo de adolescência rumamos ao nosso paraíso sem medo do mundo. Sim,
o amor e uma cabana. Sem mais nada para além do que sentíamos um pelo outro.
Quis a vida forçar o destino a trazer-nos à realidade dos comuns mortais e
tornar-nos ovelhas iguais às demais. Uma casinha, dois empregos, uma vida de
consumismo e de correria. Os sonhos foram adiados, os projectos substituídos em
nome da normalidade e do bem-estar. Não do nosso, mas do dos outros. Daqueles
que diziam que a nossa relação não duraria três meses. Mas durou, durou até
três anos. Altura em que eu me esforçava por te mostrar que era uma mulher
exemplar e que tu me fazias ver que ainda era cedo para assentar e tornarmo-nos
sérios e responsáveis.
Uma altura propícia para a tentação se
instalar no nosso grupo de amizades, no nosso sofá e por fim na nossa cama.
Foste o meu primeiro amor e aquele que me deu a provar pela primeira vez o
gosto amargo da traição.
Sofri por todos os poros. Sofri do mesmo modo
como te amava. Longa e profundamente. Confusa e perdida, só tinha duas opções
para lidar com a situação: odiar-te ou amar-te de morte. Ensinaste-me a ver o
mundo, ensinaste-me a voar alto, ensinaste-me a não ter medo de ser feliz,
ensinaste-me a enfrentar o futuro que julgava não existir. Nunca me ensinaste a
odiar-te. E nesse momento de dor profunda parecido com um luto sem corpo, fiz o
que sabia fazer melhor. Amei-te ainda mais e abri mão de ti. Sabia, mesmo sem
me aperceber, que apenas na liberdade existe o amor verdadeiro.
Ironia do destino ou vontade do Universo, a
promessa de aventura que te fizeram foi uma fraude. E de repente, ali estavas
tu a pensar na última vez que te tinhas sentido feliz, seguro, amado. Os meus
olhos vieram-te à lembrança, o meu abraço fez-te falta, a minha boca ainda te
beijava sempre que sonhavas. Eu tinha que voltar a ser tua. Mas será que ainda
havia tempo? Tinhas que tentar. Tinhas que ter certeza de que o teu pecado
tinha perdão.
Não havia nada a perdoar pois não tinha
existido condenação. A dor da tua perda apenas me tinha deixado espaço no
coração para um vazio impossível de preencher por outro. Só tu, apenas tu
poderias ocupar o lugar vago da minha infelicidade.
E assim, como uma fénix que se ergue das
cinzas, permiti que a vida fizesse sentido novamente e deixei-te regressar como
se tivesses apenas saído por um breve momento. Sem represálias, sem perguntas,
sem condições.
Mais três anos volvidos, foi a minha vez de
querer ver o mundo para além dos teus braços. A nossa relação tinha-se tornado
uma poça de água estagnada. A vida não podia ser só o que tínhamos. Iludida
pensei que ainda não sabia tudo o que havia para saber em relação ao amor. Como
estava enganada. Como fui cega em não perceber que o amor era assim mesmo: uma
constante e frágil construção que não pode ser abalada por meras ilusões
carnais ou por aventuras instantâneas.
Deixei-te, confesso, com um gosto mórbido de
uma doce vingança adiada. Agora sim estávamos quites. Ou será que não? Ou será
que foi tudo um adiar de sentimentos e da vida que poderia ter sido?
Apenas sei que nos doze anos que se passaram
depois disso, a nossa vida passou a ser a vida de outros. O amor que sentíamos
um pelo outro foi dividido por outros e multiplicou-se por outras vidas que
desconhecem o sentimento que nos une, mas que mesmo assim fazem parte desse
começo, desse primeiro beijo. Soube disso há um mês atrás quando atendi o
telefone e ouvi a tua voz, passado tanto tempo. Sei disso hoje, quando me dizes
“oi” através do Facebook. Saberei disso para sempre, quando tudo o que vivemos
vem ao de cima sempre que penso em ti. Que nome se dá a uma união assim? Ao fim
de tanto tempo, ainda sinto o teu cheiro, o teu toque, o teu sorriso ainda me
apaixona.
É como se a tua imagem me elevasse ao mais
alto patamar dos sentidos, abrindo-me a porta num regresso a casa adiado pelas
malhas do destino.
Hoje, passados doze anos, encontro-me contigo
longe de tudo o que nos fez quem somos agora, trocando fotografias dos nossos
filhos. Os filhos que são nossos, mas dos outros. As memórias que trocamos são
com outros seres que nos apanharam pelo caminho e do que restava fizeram novas
famílias, novas vidas a que chamam suas. E as nossas? Onde estão as nossas
vidas?
Percebemos entre risos nervosos que criamos
os filhos dos outros e tivemos os nossos próprios filhos. Ela já tinha uma
filha e ele também. Acolhemos os filhos dos outros como nossos e no caminho
ainda fomos pai e mãe. Como foi semelhante a nossa história depois do adeus.
Disse-te que nunca imaginei ver-te a criar um filho que não fosse teu.
Respondeste que nunca conheci na realidade quem tu eras. Se calhar tinhas
razão. Será que me conheceste a mim? Pensando bem, que interesse tem isso
agora?
Não sei o que pensar deste nosso reencontro.
Confesso que vim aqui sem querer, mas querendo. Bastou uma simples frase para
mexeres de novo no meu mundo e desarrumares a sala dos meus sentimentos. “Estou
em Lisboa.”
O meu tradutor emocional leu “Estou aqui. Bem
perto e ainda penso em ti.” Será que me enganei? Será que agora que estamos
ambos divorciados de uma vida que não era a nossa, sentimos falta do que
parecia morto há tanto tempo? Será que a solidão nos toldou o juízo?
Seja o que for as horas estão a passar como
minutos e cada vez é mais difícil sair de perto de ti. Pelo meio de conversa de
conveniência, os nossos olhares cruzam-se como se tivéssemos medo de nos
enfrentar. Ambos sabemos o que pode acontecer se nos fitarmos por muito tempo.
Até que acontece o mais temido: acabou o assunto trivial e incómodo para dar
lugar a um silêncio cheio de cumplicidade. Baixas a cabeça e suspiras fundo,
como quem procura todo o oxigénio dentro do corpo para soltar um grito abafado
pelo tempo. O meu coração acelera o ritmo, como se o botão de pânico tivesse
sido activado. Levantas a cabeça e fixas os teus olhos nos meus. É essa a tua
arma mais letal e tens consciência disso. Quantas vezes dei por mim perdida
nesses olhos. Desta vez não foi excepção. Vejo que os anos não te fizeram perder
o jeito de felino. Fascina-me o modo como imobilizas a preza apenas com um
olhar. Sinto a cada batida do meu coração que podes atacar a cada momento.
“Senti muito a tua falta.”
O meu silêncio incomoda. Tento parecer
distante, mas na verdade estou petrificada. Já fazia algum tempo que não ouvia
algo tão simples e ao mesmo tempo tão forte. E agora? Devo retribuir? Devo
fugir? Devo simplesmente entregar-me ao desejo de me sentir desejada, ao fim de
tanto tempo? De repente sou outra vez menina assustada e frágil, louca de
desejo pelo meu primeiro amor.
As minhas dúvidas, os meus medos, tudo se
dissipou como fumo ao vento no momento em que a sua mão tocou a minha. Sim,
tudo fazia sentido. Aquele era sem dúvida o amor que eu tinha posto em espera
durante todos estes anos. Aquele foi o amor do qual eu me privei, acreditando
que tinha feito as melhores escolhas.
“Também senti a tua falta. Mais do que
pensava.”
“O que fazemos agora?”
A vida ensina constantemente que existem
gestos que dispensam qualquer palavra. Nada mais havia a fazer se não beijá-lo
e acreditar que tinha realmente regressado a casa. Ainda hoje me surpreendo com
a energia que é gerada por um beijo. Senti-a percorrer o meu corpo de um
extremo ao outro. Regressei àquela rua onde o tinha beijado pela primeira vez
numa noite fria de Outubro. Confirmei que não foi o frio que me fez vibrar
dessa vez. Tal como não era agora. Era a energia pura e certeira do cupido. A
mão de Deus a abençoar uma relação que foi combinada nos céus. O reencontro de
duas almas gémeas que se amavam num plano incompreensível ao comum mortal.
Que se dane o mundo, que se dane o
politicamente correcto e o que os outros entendem como normal. O racional não
era chamado para o momento. A mente era agora um empecilho de que a alma
precisava urgentemente de se libertar. Aqui, no agora, apenas há espaço para os
nossos corpos nus e famintos de afecto. A saudade deu lugar a um banquete de
pecados. Nada pode contra o amor que sentimos um pelo outro. Nem a distância
física, nem a temporal nos privou de nos reencontrarmos. O que aconteceu até ao
mais comovente dos poetas deixou sem palavras. Foi amor do mais puro que Deus
criou.
“Só volto para a vida se a vida for ao teu
lado. Caso contrário fico aqui para sempre deitado, abraçado a ti. Não tens
noção das vezes que sonhei com este reencontro. Não podes imaginar o esforço
que tive de fazer para não largar tudo e vir a correr à tua procura.”
“Não valia de nada. Agora entendo que ambos
precisávamos de espaço e tempo para crescer. Não há nada que eu queira mais
neste momento do que ficar ao teu lado, mas…”
“Mas…”
“Mas, achas que conseguimos mesmo voltar ao
que éramos?”
“Não. Acho que depois de tudo o que passamos,
vamos conseguir muito mais.”
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